A peste que nos assola: uma reflexão sobre pandemia e solidariedade

(Foto: Jonas Sakamoto / Equipe SobreOTatame.com)

Dividida entre dias de “chuvas diluvianas” e de calor absurdo, uma pequena cidade litorânea entra em quarentena por conta de uma grave doença. Esse é o pano de fundo do romance A peste, de Albert Camus, que trata da luta dos cidadãos dessa pequena localidade contra o avanço do número de mortes ocasionadas pela enfermidade.

Quando os primeiros sinais da doença surgiram, vindos com os ratos mortos que apareciam nas ruas, a população tratou tudo com gracejo. “Não há de ser nada”.

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“Os ratos são os primeiros a abandonar os navios”, alguém alertou, sem encontrar ouvidos dispostos a escutar. Logo apareceram as primeiras vítimas fatais e, teimando em aceitar nomear as coisas como elas são, apesar dos alertas de alguns intelectuais, o governo local se negava a agir. Por fim, quando o fez, tomou medidas tímidas de contenção, colando poucos cartazes informativos, pedindo à população que evitasse certos hábitos. “A opinião pública é sagrada: nada de pânico. Sobretudo, nada de pânico”.

Mas a doença não obedece a cartazes e normas, muito menos ao que acha a opinião pública e teimou em fazer mais vítimas, até que a cidade teve que fechar suas portas, impedindo qualquer entrada e saída, e os doentes passaram a ser compulsoriamente internados. Mesmo assim, a maior parte da população ainda não entendia a gravidade dos eventos. “A peste tem matado 300 pessoas por dia? Mas quantas morrem normalmente?”. A morte não havia se aproximado o bastante para que os números apresentados significassem qualquer coisa concreta à população.

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Os cinemas, cafés e bares ficaram lotados. “A ideia, já natural no público, de que o álcool evitava doenças infecciosas reforçou-se na opinião geral. Todas as noites, por volta de dez horas, um número considerável de bêbados expulsos dos cafés enchia as ruas, espalhando afirmações otimistas.”. E o número de mortos subia, até a morte bater nas portas dos vizinhos e parentes, matando também os otimistas. Famílias foram separadas, amantes afastados, amigos postos em quarentena. Mas tudo que viam era seus interesses e hábitos individuais atrapalhados por medidas que pensavam ser exageradas. Cada um tinha que lidar com sua própria solidão com vista pro mar.

As personagens da obra, cada qual a seu modo, demonstram como são vastas as reações humanas diante da peste. Além do governante inepto (e inapto) e dos obstinados negacionistas da crise, temos um médico preocupado em cuidar de todos ao seu alcance, enquanto luta contra a própria indiferença que se instala: “Há nos homens mais coisas a admirar que a desprezar”. De outro lado, o religioso que, insistindo em juntar multidões para suas pregações, aponta que a doença é um flagelo divino aos pecadores, mesmo diante da evidência de que a morte não julga suas vítimas e da impossibilidade de conciliar a ideia de um Deus punitivo com a morte de crianças inocentes.

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Outra personagem interessante, ainda, é o jornalista que, no princípio, tenta com todas as forças voltar à terra natal e aos braços da sua amada e acha que deve ser liberado da cidade por ser um estrangeiro, uma exceção, e se vê, depois, padecendo do mesmo destino que qualquer outro ser humano e passa a ajudar na luta contra a peste, indo da revolta individual ao sentimento coletivo.

Camus representou, com a peste, a ocupação nazista da França durante a Segunda Guerra Mundial e, a um só tempo, como a revolta individual diante da morte e dos obstáculos trazidos por ela pode e deve se transformar em sentimento coletivo de solidariedade e ação.

Como afirma a epígrafe da obra, “é tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”, e é, por isso, que uma narrativa ficcional escrita em 1947 nos faz tanto sentido nesse momento. E duplamente, ousaria dizer.

Não só uma pandemia nos assola e nos testa enquanto indivíduos e sociedade como também o perigo do fascismo vindo de um governante inepto e inapto nos leva cada dia mais à beira do abismo.

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Não podemos mais tratar os ataques à democracia e à saúde pública de milhares de pessoas como um mal passageiro ou necessário que só atingirá a alguns. Se de um lado, a pandemia nos pega de surpresa, não podemos dizer o mesmo sobre o modo predatório como temos tratado os recursos naturais, nem sobre o descaso com os direitos fundamentais e os ataques do atual governo à população mais pobre e a quem quer que se oponha ao projeto de fomentar a economia ao custo das vidas dos brasileiros em situação de vulnerabilidade.

Que a peste que nos assola sirva de reflexão também sobre o cotidiano de tantos que, antes da pandemia, já não possuíam condições dignas de vida e morrem aguardando atendimento médico, e que sirva para a ação solidária de transformação concreta do dia-a-dia de todos os homens e mulheres, especialmente os que agora mais precisam.

Arnaldo Vieira Sousa é doutorando em políticas públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Advogado e professor. Contato pelo e-mail: vieira.arnaldo@hotmail.com

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