Espetáculo dirigido por Dan Rosseto aborda grandes tabus, como descoberta da sexualidade, abusos sexuais e aborto (Foto: Rombolli Torres/Divulgação).
Por Raiza Carvalho, em colaboração ao SobreOTatame.
A doçura e o desejo pulsante dos adolescentes em uma Europa repressora, muito conservadora e ultra religiosa.
O contexto se refere a algo comum em 1891, ainda forte em 1960 e, sob novas formas, em 2019. O contraste e as similaridades entre os dilemas da juventude e educação são explorados ricamente no espetáculo O Despertar da Primavera, original de Frank Wedekind (1891) e adaptado recentemente pelo diretor e dramaturgo Dan Rosseto. O espetáculo esteve em cartaz no início de dezembro, no Teatro Nair Bello, na capital paulista (SP).
Desde seu surgimento, O despertar da primavera causa desconforto no público. Em 1891, nem sequer pôde ser encenado na Alemanha conservadora.
Em sua primeira montagem, em 1906, a plateia se escandalizou com as fortes críticas à sociedade da época – pudica e moralista. No palco, assuntos de natureza delicada (até hoje pouco abordados), como morte, abuso sexual, pedofilia, aborto e religião.
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Dialogando com as três épocas, a adaptação de Rosseto trouxe uma linha de ação com quebras cronológicas e ganhou contornos inesperados. Ao mesmo tempo em que víamos os adolescentes Melchior e Wendla interagindo timidamente em 1891, éramos surpreendidos pelas versões Melchior e Wendla de 1960 e novamente arrebatados com o casal em 2019.
Os diálogos e os personagens passeavam um pela cena do outro, respondiam a perguntas feitas em outro tempo, criavam uma dança una e, ao mesmo tempo, distinta entre os casais.
Os personagens criados por Wedekind são questionadores, curiosos e realistas. Há uma Wendla que gosta de ajudar os pobres, fato que é questionado por Melchior, assumidamente ateu. Com traços de genialidade e loucura, Moritz é o melhor amigo de Melchior, que não consegue lidar com suas descobertas sexuais. Tudo nele é intenso.
O rapaz tem traços de quem tem transtornos mentais e um deles é a depressão – que o leva a falar sobre morte e, posteriormente, a cometer suicídio. A pressão social em torno dele, o bullying e a dificuldade com as notas apesar da inteligência se avolumam num caldeirão de angústia para Moritz, cuja morte é uma das cenas mais marcantes da peça; parte da adaptação textual de Dan Rosseto, ela acontece no contexto de 2019, quando os adolescentes se unem para jogar roleta russa – tudo transmitido ao vivo no Instagram.
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Antes de apertarem o gatilho, cada qual diz seu discurso final, apresentando seus motivos e suas dores, legítimas.
Há uma mulher transexual, há um Melchior em conflito existencial, uma Martha vítima de abuso sexual pelo pai, dois meninos homossexuais e outros em conflito. A morte escolhe o último a jogar, justamente o Moritz, que depois aparece como um um defundo gozador – com traços de um palhaço, crítico da sociedade.
A iluminação bem trabalhada – um traço já característico dos espetáculos assinados por Rosseto – funcionou como um fio condutor da narrativa. Quando o contexto era de 1891, a composição de iluminação com lamparinas de ferro criavam uma atmosfera ora romântica, ora soturna.
O coro – grupo homogêneo de artistas no palco, personagens não individualizados – dá um peso importante ao espetáculo, tanto estético como simbólico. Com reações e movimentos bem marcados, o coro representou diversas personagens: a sociedade da época, os estudantes da escola, os pais dos adolescentes, jovens em uma festa e e outros significados, dados pelo público.
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Enredo denso, texto de peso e direção minuciosa – o conjunto dos elementos exige estofo dos atores que o interpretam. O jovem elenco, formado por estudantes do quinto período da Escola de Atores Wolf Maya, conseguiu dar conta do recado e sustentar a força do espetáculo.
As personagens vivem, em cada período, os conflitos escritos por Wedekind com seus desdobramentos sociais, morais, sexuais, éticos e religiosos. Será espantoso e surpreendente acompanhar Moritz, Melchiors, Wendlas, Marthas, Ilses, em diferentes períodos, e perceber que o ser humano continua em busca de algo que está longe de encontrar
Dan Rosseto, diretor e dramaturgo.
Mais:
Ficha técnica – Texto: a partir da obra de Frank Wedekind;
Direção: Dan Rosseto;
Preparação Vocal: Adriana Pires;
Preparação Corporal: André Capuano;
Assistência de direção: Alex Junqueira, Gabrielle Ventura, Karina Oliveira e Sabrina Nask;
Iluminação: Beto Martins. Cenário: Dan Rosseto. Realização: Escola de Atores Wolf Maya;
Elenco (Turma M5A): Alejandro Chiaradia, Andressa Ghezzi, Andressa Sifuente, Beatriz Matos, Fabiano Issas, Gabriel Scudeler, Gabriela Abrão, Guilherme Conceição, João Pedro Ruiz, Lara Handler, Larissa Bruna, Letícia Monezi, Lívia Guimarães, Luis Felipe Gimenes, Marília Troiano, Nathalia Marzola, Patrick Oliveira, Pedro Gottardi, Sara Rodrigues, Tayane Araújo, Thaís Rovesta e Vicky Souza.
Quem foi Frank Wedekind?
Frank Wedekind (Hanover, 1864 – Munique, 1918) foi ator, dramaturgo e romancista. É um dos precursores do movimento expressionista. O Despertar da Primavera (1891) é sua peça mais conhecida. Sua obra antecipou o teatro épico de Bertolt Brecht e já apontava para o que veio a se chamar teatro do absurdo. Brecht cita Wedekind como uma de suas grandes influências, tendo escrito um ensaio sobre ele na ocasião de sua morte, além de o considerar um dos grandes educadores da Europa moderna como Tolstoi e Strindberg.
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Raíza Carvalho é maranhense, jornalista e pesquisadora em artes cênicas: artista e palavra em movimento. Para conhecer mais do trabalho dela, pela @ do Instagram: @raizaacarvalho.