Ainda Escuto Álbuns #15: Tuyo abriu a ferida e suturou “Pra Curar”

O trio Tuyo (Foto: Divulgação).

Não sou de escutar discos inteiros de uma única vez, normalmente vou catando uma coisa aqui, outra ali e só depois decido se gosto ou não do todo. Manias. A vida era assim até outro dia, quando conheci melhor a Tuyo; até então, só duas músicas deles — Amadurece e apodrece e Quando for falar de amor, estavam no meu radar.

Numa dessas de deixar músicas no aleatório, encontrei Solamento — do primeiro EP deles, intitulado Pra Doer (2017). Ela me fisgou de primeira, e de um jeito que, se eu acreditasse em sinais, diria que foi providencial. Tão potente que deixou marcas, exacerbou os sentimentos.

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E eu, não satisfeita com a experiência que uma única música tinha causado, fui buscar por mais no perfil deles do Spotify: meu primeiro encontro com o álbum Pra Curar (2018) estava por acontecer. Adicção pesada.

Ouvi o disco inteiro numa tarde, ininterruptamente. A Tuyo chegou, ficou e eu me perguntei por qual motivo esse encontro não tinha acontecido antes; um trio e dez músicas que vão expondo as incertezas, as dores de existir e sentir, visceral e leve. Entre beats, pegadas de lo-fi hip-hop, guitarras e potência, o coração vai pulsando, ora calmo, ora acelerado.

É muito bonito o jeito como eles dizem as coisas, a consistência do trio, a conexão entre as vozes, e que vozes! Parece que estavam cantando a minha vida, talvez estivessem, fator identificação detected. Pra Curar abre feridas e numa sutura muito bem feita, vai costurando uma por uma.

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E eu, depois de um longo inverno sem inspiração para escrever algo mais elaborado, estou aqui falando do que esse disco me causou. Ressalvo que estou quase sempre consumindo música, e exclusivamente por prazer. Com isso quero dizer que, tecnicamente, entendo bem pouco, mas sinto, e isso há de ter certo valor.


Terminal é a música de abertura, chega de um jeito manso, é quase um convite escancarado para acolher o sofrimento que, é claro, a gente acolhe. Tem uma pegada que vai ficando mais densa, ostensiva, as batidas cumprem bem a função causadora de angústia, só consegui pensar e viver essa música como catarse, exorcismo mesmo.

Todo mundo já viveu uma (ou várias) história assim. Impossível não mergulhar e sentir a ferida abrindo. A ausência dói.

Qual o tamanho do rombo que você deixou, pra eu tentar preencher com o que eu encontrar de você

Tuyo, em “Terminal”.

Logo em seguida, vem Me leva, e não sei se vem como um respiro depois do furacão, ou se é só vontade de fugir para não enxergar o fim se impondo. A tendência não é sempre essa? Ausentar-se de si, do outro e do mundo, se for possível, só pra não sentir, só pra não doer. Acontece que sempre dói, né? É um som meio leve, meio caótico, ciclotímico, eu acho, como o álbum todo.

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A terceira faixa é uma das minhas preferidas. Vidaloca não é exatamente sobre o amor, é sobre crescer. Estamos quase sempre nessa constante de querer ser, alcançar e ter, num corre que mais fere do que agrega, o mundo caótico e a gente esquecendo o básico sobre afeto e cuidar de si. No fim, não sobra nada mesmo, e até pra morrer a gente tá sem tempo.

Eu não preciso de você, eu sou um tronco forte, tenho a terra pra me erguer, mas eu te prendo

Tuyo, em Vidaloca.

Cuidado, a quarta faixa, vem pra expor dois lados, o inalcançável do amor, de satisfazer, de suprir todas as necessidades do outro, preencher buracos, prender… É deveras impossível ser tudo que falta no outro, é ridículo tentar. Mas num segundo momento, cuidado veio como solo fértil de cura para quem já estava quebrada, quase um afago no rosto. Dois momentos, duas escutas diferentes. Quebra, vento leva.

Eu sou dragão doeu de muitos jeitos.Costumeiramente, a gente diz que a pele vai engrossando depois de alguns baques, vamos ficando mais duros. Estar na defensiva é quase um estado permanente de alerta. A voz do Jean reverbera numa melancolia tão profunda que ecoa por muito tempo dentro: é dentro que essa música queima.

Metade do álbum, e eu sei que já me alonguei por demais, mas eis minha terceira música preferida, como um espelho me vi em Brincadeira Mais Engraçada do Universo, ela é leve, ritmada de um jeito envolvente. Por que é minha terceira favorita? Bom, “ingrata, egoísta, reclama achando que vai resolver. Corro até descobrir que tudo se move, pra longe, pra perto de mim”.

Em Eu não te conheço, comecei a ver as suturas sendo feitas, tem uma pegada bem Lo-fi hip hop, e vai crescendo, pulsando. Ela te levanta, traz certo poder. Se eu entendesse um pouquinho mais de técnica, diria que instrumentalmente é uma das melhores do disco, mas entendo um pouco menos que nada (risos).

Já caminhando pro final, temos “:’(“ que de tão leve me fez chorar, trouxe memórias desses processos de autoconhecimento, de se enxergar com menos peso, com mais amor e se perceber menos insuficiente. Guardo ela com carinho.

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Agora, é a vez daquela que me encheu o peito de esperança, de paz e acolhimento. Aquela sacada, minha preferida, justamente por tudo isso. “O vento às vezes se encarrega de levar, eu imagino o que me espera”. Todas as sensações que essa música trouxe ainda ecoam aqui. O tempo é rei, jovem.

Encerrando com Sem querer, temos um novo fim, mas um fim menos visceral do que aquele inicial, em Terminal, esse é quase esperado. Eu te deixei escapar, sem querer.

É um álbum de 2018, mas se tornou meu preferido de 2020. Obrigada por me apresentar esse ciclo de cura, Tuyo.


P.s: em tempos, a Tuyo iniciou uma nova etapa em sua carreira e está com single novo. Sem Mentir antecipa a divulgação do segundo álbum de estúdio do trio, que será lançado em breve.

A faixa já tem clipe e conta com direção de Leticiah F. Quem sabe o novo disco não ganha uma análise minha por aqui? Aguardemos.

Joceline Conrado é psicóloga de orientação psicanalítica. Atua em São Luís como psicóloga clínica e no terceiro setor, na gestão e implementação de projetos sociais. É redatora e da área de planejamento no SobreOTatame. Se interessa por temas relacionados a gênero, psicanálise e questões raciais. Gateira e leitora compulsiva.

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