O rapper Emicida (Foto: Julia Rodrigues/Divulgação).
Já tem alguns meses que Emicida vem divulgando seu novo álbum, AmarElo. Pra dar o tom do trabalho, dois singles foram lançados logo: Eminência Parda e a faixa-título.
AmarElo, com Pabllo Vittar e Majur, intitula o álbum e leva um sample de Belchior. É bonito demais ver como a luta contra o preconceito, de diversas minorias, se encontram nessa músico, um elo de dor e amor existe entre negros e LGBTs. São movimentos diferentes, mas a exclusão é resultado de um mesmo sistema.
Foi a que mais chamou a atenção do público no momento, mas, particularmente, Eminência Parda foi a que eu mais gostei até então. Eu gosto do Emicida “marrento”, o Emicida Zica, o Emicida de “Cê lá faz ideia”, que cantava o cotidiano e te questionava: “Cê lá faz ideia do que é ver, vidro subir, alguém correr quando avistar você?”.
Então, depois de Eminência Parda, que me deixou eufórica desde o clipe, eu esperei ansiosamente por esse álbum. E, poxa, valeu a pena. O Zica Voltou!
Ontem à noite, estava comendo um hambúrguer com um amigo meu, muito mais sábio sobre rap/hip hop do que eu (eu mesma não sei quase nada, pode apostar) e ele falou: “ué, não é hoje que o Emicida sai?”. É mesmo ó!
Chegamos em casa, sentamos na varanda pra pegar um vento e colocamos o álbum novo pra tocar. Por alguns minutos, ficamos um ao lado do outro em completo silêncio ouvindo a primeira faixa, Principia, que tem como uma das participações o pastor Henrique Vieira (o nosso queridinho pastor de esquerda, um dos poucos “populares” e “queridos”).
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Sabe o que eu curti pra caralho? Emicida chamou um cara cristão pra falar de amor, mesmo sendo de religiões diferentes. O que cabe perfeitamente com a questão do ELO. O AmarELO é sobre isso.
O monólogo do pastor Henrique Vieira fala do negro, fala do amor, fala desse elo que é tão necessário nesses dias que estão sendo duríssimos pra nós.
“Tipo um girassol, meu olho busca o sol”. Não tenho como não fazer a relação com Deus: há uns 5 anos, tatuei um girassol em mim e o significado era (e ainda é, pra mim) exatamente esse: o girassol gira em torno do Sol, como a gente tem que girar em busca de Deus. Leitor, não sei qual é a tua religião, não sei no que você acredita, mas se você consegue entender quando a gente fala que “Deus é Amor”, fica mais fácil aceitar essa mensagem. No caminho da Luz, todo mundo é preto!
Na segunda faixa, um feat com a maravilhosa Mc Tha, A Ordem Natural das Coisas vem mais uma vez falar de uma das milhões de dona(s) Maria(s), essas senhoras que desafiam a ordem natural das coisas, que acordam antes mesmo do sol, o astro rei, que apesar de rei, só vem depois de Dona Maria. Aqui senti a minha saudade sendo “matada”, saudade do Emicida que cantava o cotidiano, lembra? Pois tá aqui, o cotidiano que não é bonito pra muita gente, mas que Emicida e Mc Tha fizeram ser.
Pequenas Alegrias fala de família, a família que faz você sair pra trabalhar e se esforçar pra ver “as pequenas alegrias da vida adulta”. Ouvir “Encontrar uma Tupperware que a tampa ainda encaixa” e ao fundo uma vozinha “Ô, glória!”, me fez rir demais e eu pensei: porra, é isso, pequenas alegrias da vida adulta! Obrigada, Emicida!
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Na faixa Quem tem um amigo, tem tudo, Emicida consegue juntar rap, samba e um grupo japonês de jazz!!! PUTA QUE PARIU, como isso poderia dar certo? Deu. O homem é um produtor dos bons, queridos. Fiquei chocada com Zeca Pagodinho PERFEITO na música, no compasso certinho, voz deliciosa (fico me perguntando se Emicida deixa ele beber). A letra é linda, nosso Friends Will Be Friends, do Queen, só que preto e brasileiro (ainda que tenha japa na parada).
Paisagem é agonizante, ainda que o refrão transmita uma certa “paz” de que um dia tudo vai ficar bem, todo o restante é agonizante. Mas logo depois tem Cananéia, Iguape e Ilha Comprida, que começa com risinho de bebê e Emicida tentando ser “mal”. Perto de um bebê, quem consegue manter essa pose de rapper mal? Essa música é linda e apaixonante, fala sobre paternidade, sobre amor, sobre viver um dia de cada vez e apreciar a beleza do que é de todo dia. Depois de uma certa agonia em Paisagem, essa faixa traz um quentinho pra gente. É um abraço nos ouvidos.
Até aqui estava faltando uma coisinha no álbum de rapper: tem que ter algum sinalzinho de tesão e amor, né? Se não tem, fica estranho. 9nha vem pra isso: aquele amor pegada adolescente, cheio de riscos, mas que (quase) todo mundo gosta.
Ismália começa com a voz rasgante de Larissa Luz. O título e o refrão faz referência a uma poesia de Afonso Henrique da Costa Guimarães, mineirinho do século 19. A poesia é, lindamente, recitada por Fernanda Montenegro. Ficou simplesmente FODA.
“[…]
[um dos trechos da poesia]
E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…”
Emicida explica que ter a pele escura é exatamente assim: quer tocar o céu, mas acaba no chão. Nessa música, Emicida vem ensinar sobre sobre as nuances da cor, divergências dentro do movimento, sobre a importância da educação pro povo preto, sobre o massacre dos jovens negros no Brasil… A música é pra te acordar: pouca coisa mudou.
O álbum finaliza com Libre, um feat com Ibeyi, a dupla de gêmeas cubanas Lisa e Naomi, que cantam em inglês e também em iorubá. É um afrodance do caramba, pra festejar a liberdade e deixar o recado: o importante é o gueto acordar.
Isso me recordou a frase célebre da filósofa Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. A frase final cantada por uma delas “se o gueto acordar, o resto que se foda” faz todo sentido.
AmarElo é um álbum sobre amor e resistência. Parece piegas, né? Mas é exatamente isso. É o que a gente precisa.
Falando em Emicida…
Ele é uma das atrações confirmadas na edição 2020 do Lollapalooza Brasil, que ocorre nos dias 3, 4 e 5 de abril, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Bora lá?