Carlos Santana, o pai do axé music!?

Estava eu, há anos, sentado sob os domínios do bar Veneto (quando este local ainda gozava de certa aura cult em São Luís), conversando tranquilamente com um casal de amigos.

Ao descer o primeiro gole do segundo copo da quinta garrafa de cerveja, ouço meu companheiro de mesa de bar daquele momento, o jornalista Pablo Habibe, soltar a pérola: “Já parou pra pensar que o verdadeiro pai do axé¹ é, na verdade, o [guitarrista Carlos] Santana?”.

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A comicidade da sentença, naquele momento, vingou. Espoquei-me em uma gargalhada com gosto – apesar de eu ter me perguntado, em paralelo à execução de minha casquinada, se o álcool havia feito tal observação ficar mais engraçada do que realmente é. Em casa, já com uma concentração de etanol no sangue digna de dar inveja a quem é pego no teste do bafômetro, ainda me pego rindo da declaração. “A comicidade vingou mesmo”, pensei.

“E a possível verdade por trás disso? Vinga?”. Sentei-me, então, no sofá. Mãos ao queixo. Curvatura da coluna aos moldes de O Pensador, de Auguste Rodin. Só faltou eu estar pelado. Tratei de fazer um jogo de raciocínio comigo mesmo.

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O primeiro passo: “em se tratando da mistura de tambores com guitarra, até que ponto o Santana pode ser considerado um ‘pioneiro’?” Nessa hora, caio em mim: lembro-me que Ritchie Valens e Daniel Flores (ou Chuck Rio), oficialmente, foram os primeiros a incutir influências latinas no rock, ou melhor, no rock’n roll.

Ritchie Valens foi o verdadeiro pioneiro, com aquela famosa releitura de La Bamba, uma música do folclore mexicano. No entanto, ele não investiu mais nisso. A maioria gritante de suas músicas (e põe gritante nisso!) é apenas rock’n roll e vai na onda do Chuck Berry, do Elvis Presley, do Little Richard, do Bill Haley, etc.

As pitadas um pouco mais distribuídas de latinidade no repertório foram dadas por Chuck Rio, tido como o “Padrinho do latin rock” (vocês provavelmente devem conhecer “Tequila”, música dele).

Com relação às outras bandas de latin rock do final da década de 50 e do começo dos anos 60… Bom, havia aquelas que de latinidade só tinham as letras, como Los Teen Tops, com, possivelmente, uma ou outra música que saía desse padrão, e outras com as quais a fusão com os ritmos latinos era mais explícita, como Los Blue Caps.

Mas vocês vão perguntar: o que diabos isso tem a ver com axé? Nada. A matéria-prima desse pessoal é o rock’n’roll. O axé tem influências latinas e africanas, mas não é o estilo “wa bop a lu bop a lom bam boom” que se mistura com elas. É o pop/rock.

Aí você me pergunta: “e por acaso o Santana fez (ou faz) pop/rock?”. E eu digo: vamos com calma. Santana pode não ter sido o pioneiro da fusão “rock/ritmos latinos”, mas foi um dos que, em termos de projeção mundial e de intensidade na mistura, mais se destacou. O que antes se via um pouco com Chuck Rio e, rarissimamente com Ricthie Valens, foi só o que apareceu com Santana.

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Em 1969, ele lança seu primeiro álbum, intitulado Santana, no qual tempera o rock com suingue e timbres calientes como ninguém. E ele continuou fazendo isso por toda a década de 70 e, até hoje, moldando-se mais ou menos, em cada época, ao que era pop.

Se ele não tivesse feito todas aquelas parcerias a partir de 1999, provavelmente ele entraria no ostracismo. Ele se moldou ao gosto das novas gerações – e ficou bom! Não é mais o Santana dos anos 70, tudo bem, mas ele se moldou com bom gosto.

A semelhança entre ele e o axé é justamente essa: Santana e as bandas de axé misturam ritmos afro-cubanos e instrumentos elétricos com uma proposta pop – o que os separa são os variados tipos de ritmos latinos que eles misturam e as diferentes propostas pop de cada artista para cada época e lugar.

Reconhecidamente, os precursores do axé são quatro pessoas: primeiramente Dodô e Osmar, que pegaram a ideia de tocar frevo com guitarras elétricas em cima de uma Fobica (um Ford 1929), nos anos 50, na cidade de Salvador, dando início ao que seria o trio elétrico; Morares Moreira, que teve a ideia de subir num trio elétrico (lugar destinado somente à música instrumental) para cantar; e Luiz Caldas (do trio Tapajós), considerado de fato o pai do axé, que misturou o frevo elétrico com o ritmo ijexá, dando uma cara “baiana” a essa música pernambucana, em 1985.

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Tal resultado, chamado a princípio de “fricote” ou “deboche”, é considerado o marco zero do que viria a ser o axé music. Paralelo a isso, temos a formação dos blocos afro, como o Olodum e o Ilê Ayê, que tocavam (obviamente) ritmos africanos e brasileiros, que também entram na denominação axé.

Tal termo, que é uma saudação religiosa corrente no meio musical de Salvador, vinda do candomblé e da umbanda, significa “energia positiva”. Foi anexado ao termo music pelo jornalista Hagamenon Brito, com intenção depreciativa, para rotular todo esse som dançante que vinha da capital soteropolitana.

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Na sua fase inicial, com Luiz Caldas e Gerônimo, o estilo destoa significativamente do que entendemos como axé hoje. Entre o fim dos anos 80 e começo da década de 90, com Ricardo Chaves, Netinho, da Banda Beijo, Chiclete com Banana entre outros, essa música começa a ganhar mais a cara que possui hoje – e por isso muitos a odeiam.

Nos anos 90, com É o Tchan e a Cia. Do Pagode, bunda e insinuações sexuais ganharam tanto ou maior importância do que a própria música, que passa a ter uma veia mais “pagodeira” – e por isso muitos a odeiam ainda mais!

Voltemos de novo no tempo: nos anos 50, há o surgimento do trio elétrico em Salvador. Dodô e Osmar são a dupla que iniciou a ideia de tocar com guitarras o frevo pernambucano dentro de um automóvel em movimento (no início um Ford 1929), com um numeroso público em volta curtindo o som.

Mais tarde, chamam um terceiro músico, Temístocles Aragão, dando origem ao nome trio elétrico. É importante frisar que a dupla tocava com um protótipo de guitarra, a chamada guitarra baiana (ou pau elétrico/ cavaquinho elétrico). Além disso, lembremos que Dodô, Osmar e Temístocles faziam seu show em um ambiente apertado, sem muito acompanhamento.

A união do aparato instrumental afro-latino (timbales, congas, bongô, cowbells e maracás) com guitarras e contrabaixos elétricos juntamente com caixas de som, em um palco, lança mão de uma estética visual não alcançada por Dodô e Osmar nos anos 50. Os trios elétricos ao longo dos anos 60 vão evoluir, dando lugar aos tradicionais caminhões.

Mas, mesmo assim, isso não significa que esta lógica visual começou a partir daí. Isso só vai se dar depois de Luiz Caldas, quando o axé começa de fato sua gestação.

Santana nunca tocou em um trio elétrico (pelo menos até onde eu sei), mas o caráter visual da conjuntura de seus músicos reunidos se assemelha bastante a uma banda de axé. Ou será que são as bandas de axé que se assemelham à organização estética do Santana? Provavelmente a correta é a segunda opção.

Contudo, lembremos que o frevo originalmente não era tocado com guitarras, mas com uma infinidade de instrumentos, como clarinetas, saxofones, pistons, trombones, taróis, surdo, etc. Dodô e Osmar têm um grande crédito pela iniciativa deles.

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No que tange à fusão “guitarra-ritmo latino” (frevo não deixa de ser um ritmo latino…), essa dupla faz parte da turma dos pais, não há como negar. Porém, a junção de “tambores e guitarras” já veio com Santana, coisa que só se deu no axé nos 80. Não se toca frevo com percussão afro-latina. A receita para fazer axé não é a mesma que a do Santana, claro, mas há um padrão: ritmos latinos e africanos (e os instrumentos que deles derivam) junto com teclado, guitarra, bateria e contrabaixo elétrico – o direcionamento deste padrão é que fez (e faz) toda a diferença.

Como conclusão, podemos dizer (de maneira mais brincalhona do que séria, mas não 100% brincalhona…) que Santana, sim, é uma espécie de ‘precursor simbólico’ do axé.

Mais um texto para minha lista de temas esquisitos para teses de doutorado.

1Este texto foi publicado originalmente na revista BEZOURO – Edição Especial Comemorativa (ago/2013).

Caio D Carvalho é cientista social, mestre em Comunicação e Semiótica e acadêmico de jornalismo. Atua em São Luís como profissional da comunicação, tanto no sentido usual como naquele relativo ao uso de estratégias comunicacionais para ensinar (magistério). É redator e revisor do SobreOTatame.com, além de musicófilo, baterista, enxadrista afobado e apaixonado por narrativas ficcionais (ou “mundos possíveis”, principalmente os do cinema).
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