Carta para Maria, minha filha que ainda virá

Maria, filha do meu desejo que tantos outros nomes já teve, mas o atual foi gravado em mim a ferro e fogo, assim como o nome que darei ao teu irmão. Quero lhe dizer algumas coisas e permitirei que tu leias em tempo certo, porque é sobre isso que essa carta discorre, sobre os tempos.

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Portanto, Maria, minha filha, preste bem atenção nesta carta. (Foto: M-y-r-a / Deviantart)

Tua mãe – essa pessoa que lhe escreverá em terceira pessoa – é filha de uma geração sonhadora, sendo ela mesma movida a sonhos. Na primeira infância, ela sonhava em crescer, mas aquela década inicial foi vivida como deve ser, ela caiu as quedas reais que lhe renderam as primeiras cicatrizes e aprendeu a suportar as dores de ter um arranhão e escondê-lo até sarar – Tua avó havia avisado que descer aquela ladeira de patins ia dar merda, e deu –. Que dor filha da puta! Ela chorou quietinha, baixinho e o “pior” passou, caiu mais inúmeras vezes e aprendeu, naquele tempo inicial, sobre e a suportar a dor. Cedo demais.

Quando chegou aquela década de transição entre a infância e a vida “adulta”, ela ficou extremamente assustada. Surgiram algumas cicatrizes que a vovó não podia passar merthiolate, e tua mãe chorou, novamente, com a descoberta do primeiro amor, a primeira desilusão, algumas notas baixas, e uns bons nãos dos teus avós. Foram os nãos, as desilusões e um coração sangrando que lhe cravaram essa personalidade impetuosa, tempestiva, obstinada, sonhadora e, algumas vezes, frágil. Aquela década foi fundadora e túmulo de alguns sonhos.

Tua mãe sempre quis ser livre – não que fosse presa –, mas ela queria ser livre e do mundo, tirar os pés do chão e voar alto. Maria, aprender a voar não é fácil, requer algumas quedas, uma persistência constante e exige uma dose extra de autoconfiança. E na segunda década completa, ela tropeçava em direção aos sonhos, já conseguia levantar voo, mas levou uns bons tombos que lhe renderam mais lágrimas. O tempo é rei, ela cresceu!

E a idade adulta aflorou com tudo. Imagine aquela pequena, cheia de cicatrizes na pele e na alma. Agora tão senhora de si, de seu corpo, das suas vontades e dos seus desejos. Ela orgulhava-se das guerras que decidira lutar, das causas que escolheu militar, dos corpos pelos quais decidira passar, dos amores que resolvera abandonar, da carreira que escolhera seguir. Ela orgulhava-se de ser sua, por direito e escolha dela. Sempre dela! Vovó teria ficado assustada, mas sempre soube que tua mãe era mais do mundo e dela mesma do que de qualquer pessoa.

Ansiou por te apresentar sua trajetória, não para que essa fosse tua estrada. Mas para que tu entendas que os caminhos são feitos e desfeitos, que nada é permanente e nem por isso efêmero. Que algumas cicatrizes serão permanentes como tatuagem e dirão muito sobre a tua trajetória. Maria, o mundo te espera, junto com os teus sonhos. Que tu sejas livre, corpo e alma. Tua mãe promete te amparar nas quedas. Pode voar que o mundo é teu, o tempo fará de ti metamorfose.

Joceline Conrado é psicóloga de orientação psicanalítica. Atua em São Luís como psicóloga clínica e no terceiro setor, na gestão e implementação de projetos sociais. É redatora e da área de planejamento no SobreOTatame. Se interessa por temas relacionados a gênero, psicanálise e questões raciais. Gateira e leitora compulsiva.

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Letícia Lima
Letícia Lima
8 anos atrás

Gente, que coisa mais amorzinho!!! Maria com certeza vai ficar muito feliz ao ler essa carta, mas garanto que até lá, isso que tu escreveu ainda vai tocar muitos outros corações sonhadores ♡

Danilo Batista
Danilo Batista
8 anos atrás

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