Texto de Carlos Everton, em colaboração ao SobreOTatame.com
É comum encontrarmos literatura sobre fatos que se sobressaem extraordinários, destoam do nosso cotidiano, sejam eles ficção ou realidade. De fantasia a romances policiais, de biografias a romances históricos, o diferente tende a atrair.
Assim, há que se ter uma sensibilidade especial para virar nossos rostos para a nossa própria vida e enxergá-la especial, tal como é. Ser cronista do que parece óbvio e dar-lhe novas cores é talento raro encontrado em alguns dos nossos literatos. Martha Batalha, em seu romance de estreia, intitulado A vida invisível de Eurídice Gusmão, entra de tapete vermelho nesse panteão.
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Meu interesse pelo livro A vida invisível de Eurídice Gusmão surgiu após a sua adaptação cinematográfica, chamada apenas de A vida invisível, desbancar Bacurau na corrida pela representação tupiniquim no Oscar (no fim das contas, o Brasil não teve escolhidos pela Academia – bom, eles que perdem u.u).
Eu não assisti o filme, que parece ter um enredo ligeiramente diferente do livro e conta com as atuações de Fernanda Montenegro (salve!) e Gregório Duvivier. Pois um dia, como em muitos outros de tédio, eu vi a versão digital do livro em promoção na internet, meti pra dentro do leitor eletrônico guardado pra quando desse vontade.
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A vontade veio recentemente, quando senti saudades de ler literatura brasileira e me veio à mente essa compra. A conexão com o romance de Batalha foi imediata.
Ambientada no Rio de Janeiro de 1940, a história inicia por nos apresentar Eurídice e sua irmã, Guida, e seus pais. Eurídice é recatada e quieta; Guida é espoletada e inconformada. À parte essa diferença, entretanto, as irmãs são grandes companheiras e cúmplices. O que muda, claro, quando Guida desaparece.
A vida de Eurídice segue, menos por sua vontade e mais por que tem que seguir. A menina vai crescendo, mas a moldura ao seu redor não muda de tamanho, apenas de nome. E se ela antes se via comprimida ao papel de filha, vê-se achatada sendo namorada, esposa, mãe, dona de casa. Logo vemos que Eurídice não será Eurídice, mas “de alguém”: a companheira de alguém, a provedora de alguém, o objeto de desejo de alguém, a patroa de alguém. Ou assim seria, se ela não fosse Eurídice Gusmão, a mulher mais incrível já nascida.
Escrevendo uma obra localizada no tempo passado, Batalha fala do machismo de sempre, o que ainda existe, o que silencia e invisibiliza mulheres extraordinárias todos os dias.
Os anos passam, a ditadura militar eclode, o cenário ao redor muda, e isso não importa: seja acompanhando a pacata vida doméstica que oculta a fantástica persona da protagonista, os infortúnios da ausente Guida ou de outros personagens, como a empregada Das Dores e a vizinha Zélia, é isso: ser mulher, tornar-se mulher no dizer de Simone de Beauvoir, está lá em questão.
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O machismo mudou de nome, rosto e forma ao longo das décadas (ou nem tanto assim), mas sempre esteve lá. Para nossa sorte, contudo, sempre encontrou (encontra e encontrará) resistência. Ainda que a insurgência de Eurídice seja silenciosa e que a de Guida lhe custe um preço alto, por exemplo.
A constelação de personagens é um trunfo à parte. Eu franzi um pouco a testa em determinado momento por ver as narrativas pessoais de cada um interporem a história principal, detida em nome dessas paralelas. Mas a autora toma as rédeas do leitor e nos puxa por onde quer e logo vi que seu compromisso não era somente de contar um ou mais episódios, mas de jogar luz sobre aquelas vidas, trazer cada personagem a seu momento sob os holofotes.
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A narração onisciente leve e divertida, com um humor fino e sarcástico, remeteu a nomes que admiro muito, de Machado de Assis à Adriana Falcão. Martha Batalha descama e expõe a carne viva de cada um dos seus fantoches e é impossível ficar indiferente a qualquer um.
Não vá esperando grandes reviravoltas e um final impactante. Eurídice Gusmão é quem é, a típica mulher branca de classe média da sua época. Desconfio, entretanto, que há algo de universal em seu ser que fará dela facilmente relacionável, principalmente às leitoras.
Só para reflexão, queria destacar que para escrever este texto, lendo um pouco mais sobre o livro, descobri que a obra foi esnobada por várias editoras brasileiras e somente foi publicada aqui após ter sido publicada em dez outros países. Também vi numa resenha uma cena de estupro ser descrita como personagem fulano fazia sexo com personagem ciclana. O que isso nos diz sobre o nosso mercado editorial e o que se fala sobre ele?
Eu sei que é necessário revelar essas vidas invisíveis. A sua mãe, sua tia, sua avó. A sua vizinha, a cobradora do ônibus, a tia que vende lanche. Converse com elas ou pelo menos demore o olhar sobre elas com mais empatia.
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Como a Joana de Chico Buarque, a dor de Eurídice e suas semelhantes, não sai no jornal. Em mãos habilidosas, entretanto, vira romance. Ainda bem.
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Carlos José Penha Everton é maranhense, nascido e criado em São Luís. Graduado em Direito, apaixonado por toda forma de arte, adora ler e, de vez em quando, se mete a escrever também (agora, no SOT). Twitter: @cjpe19. Instagram: @cjpeverton.