Esta arte é do artista polonês Paweł Kuczyński, que aposta em artes que retratam desigualdades sociais que existem em todo o mundo. (Foto: Divulgação/Imgur.)
Entre os dias 5 e 6 de outubro, um dos conteúdos mais compartilhados na internet brasileira foi o vídeo em que a apresentadora Titi Müller, com muita sagacidade e bom humor, colocou nos microfones da transmissão do Rock in Rio um coro de milhares de pessoas, em algum tipo de catarse coletiva, mandavam Bolsonaro “tomar lá onde as patas tomam” (com todo respeito às patas) enquanto aguardavam o início do show da Anitta.
Nos mesmos dias, houve intensa discussão sobre o chamado Espaço Favela do Rock in Rio e se esse espaço serviria para dar visibilidade à produção cultural plural das comunidades do Rio de Janeiro ou se serviria, antes, para vender uma versão caricatural e gourmetizada, ao dar “permissão” para que as manifestações culturais tivessem um espaço delimitado de apresentação, quando essas mesmas atividades seguem criminalizadas do lado de fora dos muros do Rock in Rio e a maioria dos moradores das comunidades não teriam acesso ao festival.
Enquanto isso, a Superintendência Regional do Trabalho do Rio de Janeiro encontrou funcionários responsáveis por carregar instrumentos e equipamentos musicais dormindo embaixo dos palcos, depois de terem sido submetidos a uma jornada dupla de trabalho e forçados a bater o ponto de saída horas antes, para mascarar as irregularidades.
De outro lado, o criador do Rock in Rio, Roberto Medina, esteve pessoalmente envolvido na direção dos vídeos de campanha de Bolsonaro. Além disso, o contrato da empresa de publicidade de Medina com o governo federal, iniciado em 2019, foi renovado por mais um ano, ao custo de R$ 132 milhões de reais dos cofres públicos para vender a reforma da previdência e o pacote anticrimes como a panaceia dos nossos problemas, enquanto são, em verdade, medidas que tendem a agravar as diferenças sociais e punir os pobres pela pobreza.
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Na semana passada, foi divulgada a programação de mais uma edição do Lollapalooza, outro festival internacional de grande porte, contando com a presença de consagrados artistas nacionais e internacionais, com a possibilidade de novos protestos contra o governo federal, a exemplo dos que ocorreram esse ano.
Desde a edição de 2018, a organização do evento tem sido investigada por denúncias de que moradores de rua têm sido explorados na montagem dos palcos, recebendo R$ 50 reais por dia para trabalhar 12 horas. As denúncias partiram da Pastoral do Povo e dos próprios moradores de rua, tendo sido repercutidas em reportagem pela Folha de São Paulo em abril do ano corrente.
Walter Benjamin, em suas Teses sobre o Conceito da História, nos ensina que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.”
Cultura e barbárie não se excluíram no processo civilizatório, mas, antes, andam juntas ao longo do percurso histórico. Tudo o que foi produzido em termos culturais até hoje carrega o signo da exploração da força de trabalho de milhares de pessoas que permanecem anônimos, esquecidos no curso da história.
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É preciso “escovar a história a contrapelo”, diz Benjamin. Isso significa estarmos cientes do processo dialético presente na construção dos bens culturais e desvendar os elementos e relações contidas entre eles e o “lado bárbaro escondido das produções culturais” (expressão cunhada por Michael Löwy).
A constatação dessa relação entre a produção cultural na sociedade capitalista e a dominação e exploração de homens sobre outros não pode conduzir ao cinismo de afirmar “que as coisas são assim mesmo” e que “se todos exploram, a ação individual não faz diferença”.
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Tal conduta é mais um artifício do conformismo que quer se assenhorar das nossas ações e nos garantir um sono tranqüilo pautado num dúplice movimento de, por um lado, negação da barbárie que nos cerca e, por outro, sensação de que fizemos tudo ao nosso alcance ao gritar a plenos pulmões contra o governo, da segurança dos muros que protegem a nós e aos nossos privilégios.
Arte: todas as ilustrações utilizadas nesta matéria são do artista polonês Paweł Kuczyński.
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