Você já ouviu falar em masculinidade tóxica? Masculinidade baseada no medo? Sabia que 95% da população carcerária é feita por homens? E que eles vivem 7 anos a menos do que as mulheres e se suicidam 4 vezes mais? Esses são alguns questionamentos que o trabalho do Guilherme Valadares, idealizador do portal PapodeHomem, traz em uma conversa que tivemos com ele e demonstra, também, a importância do diálogo com o homem e a importância deles demonstrarem seus afetos e não morrerem silenciosamente. O objetivo por trás disso é despertar uma consciência maior dele com todos a sua volta, sejam homens, mulheres, parceiros e parceiras.
Sobre O Tatame: Começando nosso papo, em uma de suas publicações, você abordou no portal PapodeHomem o conceito de masculinidade tóxica, você pode explicar mais?
Guilherme: Creio que facilita explicar com exemplos. Masculinidade tóxica é quando as torcidas organizadas do futebol brasileiro matam 30 pessoas num único ano. É homem que acredita que deve controlar o que sua parceira veste e onde ela anda. É o universitário que bebe até cair nas festas da faculdade, sempre dizendo que é uma brincadeira, até se tornar um alcoólatra.
Interpreto “masculinidade tóxica” como camadas dispensáveis do masculino. São expressas baseadas em agressividade, controle, medo, insegurança.
Pra se provar homem de verdade ou se manter dentro do que se imagina ser o esperado de um homem, muitos acabam agindo de maneiras destrutivas consigo mesmo, com as parceiras, com os parceiros (não é algo restrito aos heterossexuais), com todos à sua volta. Não à toa os homens são 95% da população carcerária brasileira e mais de 90% dos homicídios. Além disso, eles vivem 7 anos a menos do que as mulheres e se suicidam 4x mais.
O que se observa claramente é um padrão de comportamento autodestrutivo. É aí que se situa a crítica e o potencial de transformação.
Criticar masculinidades tóxicas é diferente de criticar o masculino ou os homens. O masculino é maravilhoso, amplo, rico, assim como o feminino.
Fonte pros dados: Masculinidade Tóxica
Sobre O Tatame: Considerando sua experiência, quais são as maiores barreiras que o homem encontra para sair do “papel masculino esperado”?
Guilherme: Primeiro cabe pensar quais os problemas com os papéis esperados. Ou arriscamos adotar uma postura ingênua e limitada, pensando que qualquer papel esperado é ruim — sendo que sempre houve e vão haver certas características associadas aos gêneros, ainda que elas estejam em constante fluxo. É natural que expectativas existam.
Partindo desse entendimento, creio que a grande barreira é o silêncio. Os homens falam pouco sobre o que sentem.
Ao falar pouco, surgem menos momentos de reflexão e questionamento. Sem questionamento, não há mudança.
Sobre O Tatame: Quais são os mecanismos que poderiam ser aplicados para ajudar na desconstrução dessa masculinidade tóxica?
Guilherme: Na pesquisa que fizemos com a ONU Mulheres ano passado (escutamos mais de 20.000 pessoas em todo o Brasil) mapeamos 7 grandes gatilhos de transformação para os homens. São:
- afeto
- paternidade
- espiritualidade
- exposição ao sofrimento das mulheres
- acesso a espaços seguros de acolhimento
- busca por felicidade
- momento de ruptura ou crise
Esses gatilhos podem ser traduzidos em iniciativas bastante práticas. Como o grupo de homens que se reúne na laje de um bar, em Recife, pra discutir saúde masculina. Ou o grupo LGBT que organiza debates após exibição de filmes, nas escolas da vizinhança. Ou os grupos reflexivos, feitos com homens condenados pela Maria da Penha, que chegam a reduzir a reincidência de 75% pra 5%.
Todas essas iniciativas têm em comum aspectos de afeto e acolhimento, duas das inteligências mais poderosas para esses processos, a meu ver.
Infelizmente, na prática vejo muitos homens se abrindo pra transformação apenas em momentos de crise. Se isso é um problema, por outro lado é uma janela de oportunidade. Poucos momentos são mais preciosos do que quando estamos no meio de uma grande crise, que nos tira o chão. Despidos de certezas, nos abrimos pra escutar o que nunca escutamos, pra pedir e aceitar ajuda, sem achar que isso nos torna fracos ou menos homens.
Reflexão, questionamento, diálogo, novas atitudes. Esse é um ciclo positivo que sugiro pra mudança começar a acontecer.
Quem quiser se aprofundar, pode vir por aqui. Ou assistir o documentário completo que fizemos baseado na pesquisa com a ONU Mulheres: Documentário Precisamos falar sobre os homens
Sobre O Tatame: O PdH já passou por mudanças ao longo de 10 anos. Qual foi o momento que tu sentiu que vocês poderiam ser um espaço de transformação do homem?
Guilherme: Quando nós, que estamos por trás do PdH, começamos a nos transformar de verdade.
No começo nós éramos imaturos nos achando maduros.
Reproduzíamos vários discursos de prisões masculinas, com outras roupagens. Creio que nossos primeiros 5 anos foram um “jardim de infância”. Depois de tomar umas belas pancadas, seguindo sempre abertos às críticas, começamos a nos aproximar de outras redes, que já olham pra masculinidades e gênero há muito mais tempo do que nós. E também nos aproximamos de redes que lidam com processos de transformação, nos conectamos a professores legítimos e tradições de sabedoria. Tudo isso leva tempo. E não creio que seja possível transformação real num estalar de dedos.
Uma vantagem que temos em relação a veículos de mídia usuais é que nascemos de uma comunidade e somos uma até hoje. Comunidade, continuidade, abertura e paciência são três aspectos essenciais pra mudanças positivas acontecerem, creio. E nem sempre há espaço pra isso em veículos de mídia tradicionais, com projetos editoriais fechados, público alvo e investidores por trás.
E um perigo pra quem aspira lidar com mudança é se tornar muito teórico. Se tornar expert em palestras e entrevistas e textos, mas esquecer da prática. Esquecer que deve ficar perto das reais fontes de sabedoria e que deve praticá-las, não apenas pensar nelas ou achá-las bonitas.
Quem quiser se aprofundar na transformação, recomendo conhecer o lugar — é uma rede de pessoas engajadas em processos similares.
Sobre O Tatame: Por que é tão importante combater essa “masculinidade baseada no medo”?
Guilherme: Porque ela prende os homens em ciclos autodestrutivos, que prejudicam a si mesmos, outros homens e outras mulheres.
É uma identidade baseada na insegurança, por mais que possa parecer agressiva e forte às vezes.
A real força está em se permitir ser fluido e vulnerável — o que não significa ausência de firmeza, muito pelo contrário. É necessário bastante confiança em si pra se permitir mudar de posição sem achar que isso te coloca em cheque.
Sobre O Tatame: E por fim, por que você se interessa em trabalhar com essa causa? O que te motiva a fazer isso?
Guilherme: Qualquer pessoa que defenda uma causa já sofreu com ela.
Já sofri muito nessa prisão e vi muito sofrimento causado por ela. E não há pessoa melhor pra ajudar os que sofrem do que quem passou exatamente por aquilo. Mesmo quando estamos em crise, há essa oportunidade maravilhosa, de observar como se dá o processo de aprisionamento. Ao entender isso, quando sairmos, vamos poder ajudar outros.
Fora isso, já é bem claro no tempo em que vivemos que felicidade genuína não vem de dinheiro, status ou acúmulo de posses (vide o excelente documentário “Happy”, assistam!). Beneficiar outras pessoas é uma aposta bem mais segura de felicidade e realização. Quem tem rede, tem tudo. Sozinhos e autocentrados, somos minúsculos, não temos chance.
Ficou curioso para saber mais? O Guilherme Valadares será um dos palestrantes do TEDxRuaPortugal, que ocorrerá no próximo de 11 de março no auditório Maria Izabel Rodrigues, na UNDB, a partir das 14h.
Com o tema “Propósitos que Movem”, o evento contará com histórias e projetos que estão mudando vidas e concepções em São Luís e no Brasil.
Saiba mais sobre o evento clicando aqui!