“É tentador achar que a vida (e seus possíveis significados ocultos) ‘consta nos astros, nos signos, nos búzios’, nos números” (Arte: Illustration Forest/Shutterstock.com).
Parabéns aos sobreviventes!
Finalmente chegamos no ano 2020 depois do nascimento de Cristo. Também podemos aguardar até o dia 25 de janeiro para celebrar a virada, quando começará o ano do rato (ano 4718) no calendário chinês. Dia 21 de agosto será o início do ano 1442 no calendário islâmico e no dia 18 de setembro começa o ano 5781 do calendário hebraico.
Muito possivelmente estaríamos hoje no dia 14 de nivoso do ano 228 do calendário da revolução francesa mas ninguém mais se importa em seguir contando.
A contagem do tempo, as transições, as renovações cíclicas são tão velhas quanto a humanidade. Uma das representações mais antigas da passagem cíclica do tempo é a Ouroboros, a serpente que morde a própria cauda. As serpentes, aliás, são frequentemente associadas a uma relação de repetição e ambiguidade.
Na epopeia de Gilgamesh, em que uma cobra tira do herói sumério a possibilidade de ser imortal e passa ela mesma a se renovar, trocando de pele; na narrativa nórdica do conflito entre Thor e a serpente Jormungand, que circunda o mundo, lhe dando estabilidade mas representando perigo até o Ragnarök; na lenda da serpente na Upaon-Açu, que dorme tranquila até a que a nossa própria versão do apocalipse se concretize.
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Os antigos romanos, por sua vez, tinham uma divindade específica para as portas, pontes, passagens e limites. Janus, ou Jano, era representado com duas faces, uma imberbe e outra com farta barba, com um olhar no passado e outro no futuro e com controle sobre os inícios e os fins. Janeiro, o primeiro mês do ano recebe seu nome em homenagem ao deus.
O fim do semestre letivo, do ano, das décadas, dos séculos, dos milênios, os mensários, aniversários etc., são marcos de rememoração, avaliação e rememoração nas mais diversas culturas porque não sabemos lidar com a eternidade (existiria ano novo no céu? E qual o calendário adotado?). Precisamos de começo, meio e fim. Às vezes, tudo embaralhado.
O ano de 2020 será bissexto, regido por Xangô, pelo Rato, pelo Sol, pelo número quatro, pelo Arcano do Imperador, por qualquer coisa que nos faça achar que as coisas têm um sentido pré-estabelecido, que existe uma ordem por trás de toda essa aparente bagunça.
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Assim, ficamos com um otimismo cego como o personagem Pangloss, na obra de Voltaire, para quem “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis” e as coisas ruins acontecem certamente por bons motivos que serão desvendados lá na frente.
É tentador achar que a vida (e seus possíveis significados ocultos) “consta nos astros, nos signos, nos búzios”, nos números. Que existem ciclos de 11, 22 ou ainda 33 anos e que assim, nos meus recém-adquiridos 33 anos encontrarei (sem esforço ou mudanças de comportamento) a maturidade espiritual, tal qual Jesus, Buda ou qualquer outro exemplo de herói solar nas diversas mitologias.
Um uso interessante dos ciclos solares de 33 anos aparece na série Dark, em que as repetições e suas consequências não são fruto de nada sobrenatural, mas antes resultados diretos das nossas próprias ações.
Nietzsche, com sua ideia do Eterno Retorno, nos convida a imaginar a repetição infinita da nossa vida tal qual já a vivemos: “não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência”.
Não o fim do mundo, não um julgamento final por uma entidade com um plano inefável e que estabeleceu uma ordem das coisas a que temos apenas um mero vislumbre. Mas a repetição da nossa própria vida a partir das nossas próprias decisões e suas consequências.
“Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?”, nos pergunta Nietzsche. Qual será a nossa resposta?
Feliz ano novo de novo!