[ATENÇÃO, O POST ABAIXO CONTÉM SPOILERS]
Então, vamos finalmente falar sobre Fleabag!
A série ganhou o Globo de Ouro 2020 e o Emmy Awards 2019 como melhor série cômica. Phoebe Waller-Bridge, a criadora, já tinha criado outra que eu assisti e que, infelizmente, não teve continuidade: Crashing (disponível na Netflix).
Eu amei Crashing, ela tinha personagens bem caricatos e um contexto meio difícil de “ser real”, embora também não seja irreal — nada irreal na verdade.
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Inclusive, penso que caricato é uma palavra que descreve bem o estilo do trabalho de Phoebe. Fleabag também tem personagens caricatos e uma atmosfera um pouco exagerada. E essa é uma das características que deve fazer a série se encaixar em “cômica” — apesar de todo o drama que lhe cerca.
O nome da personagem principal não aparece em nenhum dos 12 episódios. É uma série curta, de apenas 2 temporadas, 6 episódios cada, com média de 30 min cada episódio (eu ouvi um “Glória a Deus!”?).
Como uma série tão curta e “cômica” causou tanto reboliço? Como uma série tão curta pode ter ganhado prêmios (melhor série, melhor roteiro, melhor atriz…)? E, o mais doido: como ganhou tanto mesmo não sendo tão popular quanto outras?
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Fleabag é uma série que te exige parar e sentir. Ela não vai te dar respostas: você não encontrará os temas mastigados para sua compreensão. Eu também não tenho intenção disso, inclusive porque enquanto escrevo este texto, fico pensando que nem de longe vou conseguir explicar o tanto de coisas que comparecem nela e que algumas talvez eu nem tenha visto ou vi de forma muito rasa.
É preciso parar, assistir e tentar se colocar no lugar de uma mulher jovem, inteligente, bonita e, a melhor palavra que eu encontro agora é: fodida financeiramente, psicologicamente e literalmente.
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Mas como a gente não sabe qual é o nome dessa fodida, a gente vai chamá-la de Fleabag mesmo, embora possa se encaixar aqui toda mulher que, uma hora ou outra, se achou “gananciosa, pervertida, egoísta, apática, cínica, depravada, uma mulher moralmente falida que não pode nem chamar a si mesma de feminista”. Começando do básico:
Homens // Feminismo
Uma das coisas que me questionei a assistir Fleabag é que eu não conheço nenhum homem que tenha assistido. Mal consegui conversar com as mulheres que conheço que assistiram — poucas (talvez porque a série não é da Netflix, serviço mais popular que a Amazon, embora esta seja mais barata).
Ao longo da série, fui percebendo o quanto é incômodo ser um homem perto da Fleabag: é incômodo existir perto de uma mulher que não está se importando tanto com os homens como eles gostariam. É incômodo existir perto de uma mulher que usa o corpo do homem tanto quanto usam o dela ou que faz do homem uma grande piada. Deve ser incômodo assistir Fleabag e ver a busca por ser um homem melhor de maneira um tanto ridicularizada. Ainda que, em vários momentos, você veja que Fleabag parece até compreender bastante os homens e suportá-los também.
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Eu me pergunto: os homens também não têm conflitos sobre suas relações familiares, sexo, trabalho, amizades e etc.? Por que então Fleabag é tratada como uma série para mulheres? Parece que sempre que uma protagonista é feminina e muitas questões são mostradas do ponto de vista feminino, automaticamente a coisa torna-se para mulher.
De fato: os conflitos são vivenciados de maneira diferente por homens e mulheres, mas nós, mulheres, estamos tão acostumadas a assistir e até mesmo entender os conflitos vivenciados por homens – porque eles são humanos como nós, ué -, por que não o contrário também?
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No twitter, encontrei uma moça (infelizmente, não achei o tweet para colocá-lo aqui) comentando que talvez não exista nenhum homem preparado para a mulher Fleabag. Concordo e adiciono que acho que nem próprias mulheres Fleabags estão prontas para viverem consigo mesmas, e talvez façam tanta raiva aos homens porque se sentem tão ruins quanto eles para elas.
Fleabag é uma mulher num estado deplorável e sua relação com os homens é minimamente curiosa, a ponto de ser um homem que faz, na primeira temporada, ela finalmente dizer: “Eu só quero chorar o tempo todo”.
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Acho que esse é um ponto que me identifico bastante. Confesso que embora todos os dias um pouco mais se fortaleça em mim a verdade de que homens podem me manipular e serão sacanas comigo na maioria das oportunidades que tiverem, eu também me sinto uma mulher que não deve admitir que sou perfeitamente capaz de cair na lábia de um cara desses e que talvez eu já fui tão sacana quanto alguns, mesmo eu sabendo que não sou (mas que já fui ou posso ser).
É também verdade que não tem um dia que eu não chore e não tem um dia que mesmo eu estando há meses num retiro pessoal eu também não pense: “ainda preciso de mais tempo pra superar todas as minhas cagadas”.
A imagem da mulher feminista, que precisa estar bem com seu corpo, que é capaz de perceber uma cilada de longe, que toma as melhores decisões para si, que se ama e se quer bem não existe em Fleabag – e isso é bom porque são exigências pesadas demais! Embora eu tenha certeza que ela acredite em tudo isso, é tudo teoria perto da vida dela: ela é incomodada com o corpo, ela cai em ciladas, ela é rejeitada e comete vários erros, alguns contra si mesma. Você se sente assim também?
Uma das cenas em particular me chama bastante atenção [ATENÇÃO, SPOILERS ADIANTE]: quando Fleabag acha que um homem lindo está apaixonado por ela. Num dia de merda, ela descobre que não, não é por ela que ele está apaixonado. E o pior de tudo é ter que ouvir: “Eu sabia que você não daria a mínima”. Se você é uma mulher com poucas dificuldades em relação à casualidade da relação sexual, talvez já tenha ouvido algo assim.
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Em geral, parece que mulheres que são “livres” (será que somos mesmo?) são também vistas como mulheres que pouco vão se importar com desconsideração de qualquer ordem. Parece que junto com a abertura do canal vaginal, também há uma abertura para ausência de qualquer forma de ética, “Ah, ela não vai se zangar não”,”Tu não me parece o tipo de gente que se importa com isso”, “Eu sabia que você não daria a mínima”.
E ter que sorrir amarelo pra esse tipo de coisa, engolindo a seco a realidade da imagem de quem não dá a mínima…
Boa parte do tempo Fleabag é vista como uma pessoa que não está dando a mínima, quando na verdade seu sofrimento é tão profundo e intenso, que essa imagem de que ela não esteja dando a mínima é uma das formas dela continuar prosseguindo: fazendo piada de si mesma, se desrespeitando e tentando manter seu negócio aberto, não só por ela, mas para diminuir a dor do luto e da culpa pela morte da única amiga.
Pra variar, em Fleabag também é possível perceber como a felicidade da mulher muitas vezes pode ser resumida a estar com alguém e ter seu corpo validado pelo Outro, em geral um homem.
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Ser uma mulher moderna é ser atormentada continuamente pelo risco da solidão, por não se encaixar e pelo mito da beleza (estou lendo O Mito da Beleza, então ele aparece na minha mente o tempo todo). É fácil querer ofender uma mulher: basta chamá-la de feia, mal amada, demonstrar desinteresse sexual e lançar uma praga sobre sua suposta futura felicidade amorosa.
Por falar em sexo…
Pensar em Fleabag me lembra de quando em, uma das consultas com a minha psiquiatra, eu perguntei se a medicação reduzia a libido, porque eu estava achando estranho estar tão sem interesse por ninguém nos últimos meses e, sei lá, tão “controlada”. Ela me disse: “Não, esse medicamento não altera em nada a libido, mas se você tinha algum comportamento compulsivo em relação ao sexo, é normal que ele diminua”.
Eu saí da sessão estarrecida, parece que tinham tirado uma venda dos meus olhos. E quando estava reassistindo Fleabag para escrever este post, me lembrei do porquê desse assunto, na série, me tocar tanto.
Fleabag tem um comportamento compulsivo em relação a sexo, que tem muito pouco a ver com o prazer de viver a liberdade sexual da mulher contemporânea (embora seja também), mas muito mais sobre usar o sexo como uma válvula de escape, que, sinceramente, na maioria das vezes nem vale a pena — o que tem de sexo de péssima qualidade, viu? Não vale nem o suor!
O sexo em si não é problema. Como poucas coisas em si no mundo são (exceto o capitalismo, o colonialismo e a figura mítica de Satanás, que aí não tem pra onde fugir, um é derivado do outro), voltando, o sexo em si não é um problema, mas nossa relação com ele tem ficado cada vez mais nebulosa.
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É esquisito pensar que vivemos em um mundo onde ainda temos que lutar pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres ao mesmo tempo que precisamos analisar o quanto a sexualização de tudo tem nos feito mal.
Ficar sem sexo por muito tempo? Estranho. Transar demais? Estranho também! Mulher que ainda não consegue transar casualmente? Ah, vamos nos libertar dessas amarras! Mulher que só consegue, ou simplesmente transa casualmente? Um problema! É isso o tempo todo e isso é real.
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Não é mimimi. São problemáticas/questionamentos reais. E Fleabag traz isso à tona quando, na primeira temporada, se apresenta como uma mulher com muita facilidade pra falar e fazer isso, e na segunda se percebe sua própria algoz, quando admite que o sexo não resolvia sua solidão.
Solidão
A solidão é uma temática que de formas diferentes vai aparecendo na série. A própria Fleabag é uma mulher vivendo o luto, as compulsões, sentimentos à flor da pele e a ausência da palavra: a solidão num estado bruto de desamparo.
O luto da mãe, da amiga (que aqui vem junto com uma boa dose de culpa), o afastamento da relação com o pai e uma relação cheia de critérios e regras com a irmã. Sentir-se só é diferente de estar só. Em Fleabag, o que você vê é o estar só e o sentir-se só, num combo. Dói.
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O tempo todo perguntam para Fleabag se ela está bem. Você está bem? Precisa de algo? Tá tudo bem? Todos perguntam, porque é óbvio que não, nada está bem, mas Fleabag não consegue pedir ajuda, não sabe falar sobre afetos e a única vez em que acaba indo parar numa terapia se vê questionada e acaba fazendo exatamente aquilo que já sabia fazer. E, concordo com a terapeuta: no fundo, a gente sempre sabe.
Fleabag vivencia uma solidão cheia de personagens coadjuvantes, ela não encontra em ninguém o conforto que sua melhor amiga proporcionava. Ouvir a voz de Boo na caixa postal, diante do abandono da irmã, é o mais reconfortante possível para esta mulher. Ouvir uma gravação de menos de 10 segundos de uma amiga morta: é isso que reconforta, momentaneamente, Fleabag.
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Ela fala com a gente (a famosa quebra da quarta parede), e, no começo, é sempre muito certeira, até que as coisas começam a desandar, o que me faz pensar que quando os sentimentos são mais fortes que nossa capacidade de racionalização, os acontecimentos parecem não seguir mais a linha lógica do nosso raciocínio. E Fleabag tem que ficar envergonhada até mesmo diante de sua plateia.
O pai
É com seu pai que Flea vai quase às 2 horas da manhã numa tentativa desesperada de ser amada e querida. Esse conforto familiar que às vezes resolve tudo: chorar na frente de seus pais, ser consolada… É bem o que não acontece com Fleabag, na verdade. Recentemente, eu perdi meu pai, e essa cena triste de Fleabag me lembrou quando eu, pré-adolescente, fiquei chateada com uma amiga e o único abraço que me confortou foi o do meu pai.
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É fácil entender como a ligação entre mãe e filha é importante, no entanto, ainda não é explorada o suficiente a relação entre pais e filhas e o quanto o laço com este primeiro homem — e também a ausência dele — é tão importante para a forma como nós mesmas vamos ter que lidar mais na frente com outros homens, com o machismo e com todo tipo de desamparo.
Amor e redenção
O paternal, maternal, fraternal, conjugal: ele nasce, cresce, morre — ou se modifica. Em Fleabag, o amor é abordado de uma maneira um pouco trágica: ela percebe-se apaixonada por algo impossível de acontecer, o lugar (que é alguém) onde ela encontrava amor e conforto não existe mais e o amor que algumas pessoas têm por ela não é bem o amor que ela quer receber. Além disso, nem ela sabe demonstrar o que sente da melhor maneira possível, mesmo quando quer fazer as coisas certas.
Não é irônico Fleabag decepcionar seu grande amor (Boo, sua amiga) e acabar se apaixonando por um padre? Que nunca poderá retribuir o amor que ela quer? Apaixonar-se por um padre é algo tão “irreal” que parece perfeitamente plausível acontecer com Fleabag. Além disso, o padre é completamente inusitado e tão fodido quanto ela.
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Onde o padre encontrou o amor que precisava — na sua fé — , Fleabag encontra na impossibilidade de amá-lo, de alguma maneira faz sentido: é um amor tão puro que não poderá ser tocado e Fleabag não poderá estragar como sempre faz — como ela mesma diz. E, o melhor de tudo: a certeza de que isso tudo vai passar.
O amor que não pode existir, o sexo que não pode ser consumado, o toque que é proibido: esses Nãos que Fleabag recebe são importantes para seu “renascimento”. Essa impossibilidade é o verdadeiro marco zero do recomeço dessa personagem tão maravilhosa e que, sabiamente, Phoebe fez questão de não continuar. Que a gente imagine mesmo.
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Fleabag é uma série sobre dores. É uma série sobre pessoas que erram, uma série sobre mulheres num mundo cão, sobre relações. Pessoas erram, mulheres sofrem e as relações não são tão simples: todo mundo em algum momento precisa de uma chance ou um recomeço. E, olha só, o recomeço de Fleabag é: um amor que não será correspondido, com lágrimas, sozinha num ponto de ônibus. Nem sempre tudo é luz, nem todo recomeço é bonito. É preciso muita sensibilidade pra entender o choro no riso.