Uma vez Flamengo, sempre Flamengo… (Foto: Sergio Moraes/Reuters/Divulgação).
Por Luciano Leite, em colaboração ao SobreOTatame.
Sábado, 23 de novembro de 2019. Brasil. Às 18:46, aproximadamente, 60 milhões de pessoas vestindo determinadas cores entram simultaneamente em estado de euforia completa, se abraçam, esbravejam em alegria, entoam hinos e celebram juntos. O que teria acontecido? Estão todos loucos? Você e eu sabemos bem o que aconteceu, pois você e eu provavelmente estávamos lá e vivemos para testemunhar esse momento.
Na final da Copa Libertadores da América contra o River Plate (Argentina), após os 87 minutos mais angustiantes do ano para o Clube de Regatas do Flamengo, aconteceram, de modo fantástico e surpreendente, os melhores 7 minutos da vida de muitos torcedores e atletas, um momento de felicidade inigualável que entra para a história do futebol mundial.
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Gabriel Barbosa, o Gabigol, em menos de quatro minutos, anotou dois gols que garantiram a vitória ao Flamengo no Estádio Monumental de Lima (Peru), coroando o time como o melhor do ano no continente sul-americano. Indiscutível.
É este o fenômeno da catarse associada à arte: a purgação das emoções extremas e o processo de purificação do ser causada pelo envolvimento com um enredo teatral fantástico com muitos atores e fatores envolvidos.
Se você e Aristóteles (ele mesmo, o filósofo) pensavam que apenas as Artes “superiores” como o teatro podem proporcionar isso, preciso dizer que não. Em escala nacional, as emoções e paixões vieram à tona de uma maneira talvez nunca vista antes, ocasionadas pela luta e disposição dos heróis modernos que conhecemos como jogadores de futebol.
Na final da Libertadores de 2019, temos todos os elementos de um enredo ficcional clássico:
1) A apresentação dos personagens e da história das duas potências sul-americanas e suas respectivas torcidas que se enfrentarão durante noventa minutos;
2) A complicação: o terror de ser derrotado pelo vilão, que marca um gol no começo do jogo e recorre ao artifício malicioso do excesso de faltas e do antijogo para limitar as ações ofensivas do Flamengo.
3) O clímax: quando o herói predestinado, como um deus ex machina, surge das sombras para causar uma reviravolta de impacto e se consagrar diante de toda uma nação;
4) O desfecho: com os heróis voltando para casa com o totem da vitória (a grande – talvez grande demais- taça do campeonato), consolidando um final feliz e reencontrando o seu povo para a grande celebração.
Futebol, tecnicamente, não significa nada. São literalmente vinte e dois homens, em dois times de onze, com o objetivo aparentemente banal de fazer um objeto esférico ultrapassar uma baliza, sob regras e condições necessárias. O jogo é um mundo próprio que impõe restrições e comportamentos peculiares aos participantes. A teoria dos jogos, uma área muito interessante da matemática aplicada, já analisou cientificamente como se dão as ações, decisões estratégicas e racionalidade por trás de todo e qualquer jogo. Inclusive do futebol.
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E , ao mesmo tempo, o futebol significa tudo: a paixão, a cultura, a magia, a humanidade. O esporte nos torna mais humanos e nos faz sentir vivos: trazer paixão aos eventos, os atos, às palavras, aos símbolos. Nem sempre conseguimos ou precisamos compreender de modo formal ou burocrático o que acontece à nossa frente. Há momentos em que é preciso viver a vida com todo nosso coração.
O grande evento que ocorreu no começo da noite do último sábado (23) teve ainda os componentes indicados por Emile Durkheim em sua análise sociológica sobre catarse coletiva e incidentes de impacto cultural: as emoções negativas e positivas compartilhadas pelo grupo, o espírito de comunhão e integração entre os participantes, e no final, a força e a renovação da confiança na própria Vida. Isso mesmo, Vida com V maiúsculo.
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Quem saiu às ruas no sábado à noite (como eu, que precisei ir ao supermercado em São Luis do Maranhão logo após o jogo), congratulou com os outros torcedores, abraçou desconhecidos, e percebeu um poderoso senso de pertencimento, que nunca tínhamos vivenciado e talvez nunca mais vivenciemos.
Sentir, pertencer, comungar: uma tríade de atitudes intuitivas e emoções que se materializa no esporte, mais especificamente no futebol, como em nenhuma outra esfera da vida a não ser a religião.
No teatro, na arte, no futebol, na vida, como disse o próprio Aristóteles em Poética, “é provável que coisas improváveis aconteçam”. Para a torcida do River Plate, fica a tragédia pura e simples. Para o Flamengo, a glória absoluta.
P.s: Este texto foi escrito antes do Flamengo se tornar o campeão brasileiro, no último domingo (24). Parabéns, em dose dupla, Flamengo!
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Luciano Leite é quase administrador profissional e apaixonado por futebol que busca entender o esporte por vias paralelas e inesperadas. Pensa que é parecido com o Jason Statham. Para conhecer mais do trabalho dele, pela @ do Instagram: @lucleite061.