Gênero e sexualidade nos entraves de um feminismo lésbico

Texto de Millena Braz, em colaboração ao SobreOTatame.com (Arte: Reprodução/Alyson Escalante).

Começo esse texto salientando que ser lésbica é subverter a inteligibilidade do gênero em sua forma mais plena, pois é negar a presença masculina não só para a constituição de uma família, mas para o gozo.

Acredito eu que seja fundamental entender como aconteceu a compreensão das distinções das lutas das mulheres lésbicas e dos homens gays para uma melhor compreensão dos fatos.

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Foi com a continuação dos movimentos sociais dos anos de 1960 que os discursos sobre identidades foram se tornando mais flexíveis com o apoio nos estudos culturais, feministas, estudos sobre raça e etnia e os estudos gays e lésbicos.

Mas foi apenas em 1980 que cresceu o interesse cultural pelo Outro, não só representando o “Terceiro Mundo”, mas também a mulher, os gays e lésbicas e os pretos.

As novas vertentes do feminismo, pós-feminismo ou feminismo dissidentes (PRECIADO, 2007), começaram a aparecer de forma a descentralizar um discurso feminista hegemônico, que tomava o sujeito do feminino (a mulher) com uma categorial universal e ignorava aquelas mulheres que estavam sempre a margem do gênero, da classe, da sexualidade, da raça e etnia.

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Esse mesmo movimento de autocrítica aconteceu com os estudos gays e lésbicos, que tinham uma política de caráter unificador, tornando a luta do homem gay a mesma da mulher lésbica, sem contar com as diferenças das estruturas opressoras que atingiam esses grupos, que são, apesar de estarem juntos em uma luta, distintos (SARMENT, 2014).

Essa crítica aos estudos gays, surge para contrabater a defesa da noção de uma comunidade homossexual global que buscava aceitação através da luta pela igualdade de direito dentro da norma social, ignorando assim as conjunturas políticas e sociais que faziam com que os sujeitos como os pretos, os latinos, os pobres, as travestis, as mulheres lésbicas e os transexuais não se reconhecessem nessa concepção de sexualidade que era bem unificada.

Foi surgindo basicamente o entendimento de que as consequências que os homens gays sofriam/sofrem por ultrapassar a linha social da heteronormatividade, não eram as mesmas que as mulheres lésbicas sofriam/sofrem.

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No livro A Dominação Masculina, Pierre Bourdieu (2012) diz que os papeis sexuais são muito bem determinados, onde as mulheres assumem o posto de servidoras e submissas, quanto os homens o de dominadores; “as práticas e as representações dos dois sexos não são, de maneira alguma, simétricas” (2012, pg. 29).

E essa dissimetria do sexo se dá não só por os homens e as mulheres têm maneiras diferentes de ver a relação amorosa, mas também porque o ato sexual em si é concebido pelos homens como posse.

O autor diz ainda que em inúmeras sociedades a relação homossexual “é vista como uma manifestação de ‘potência’, um ato de dominação” (2012, pg. 31); e que, a exemplo disso, temos a sociedade Romana, em que a homossexualidade passiva é considerado algo como monstruoso.

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Podemos compreender, a partir disso, que os homens gays sofrem consequências ao ultrapassar a linha simbólica da heterossexualidade, por se aproximar de uma papel que é dito como “feminino”, o da passividade.

Porém, quando se fala das mulheres lésbicas, as questões mudam um pouco de contexto. A autora Catharine MacKinnon, em Feminism Unmodified, Discourses on Life and Law (1987), afirma que a “simulação do orgasmo” é uma comprovação do poder masculino, que faz com que a interação entre os sexos se dê de acordo com a visão dos homens, que tomam o orgasmo feminino como uma comprovação de sua virilidade e do gozo garantido por essa forma suprema da submissão.

Logo, quando uma mulher abdica da presença masculina para chegar ao orgasmo e se deleita com outro corpo feminino – abrindo mão de uma presença masculina para, não só gozar, como construir uma família, uma vida -, ela subverte toda uma lógica social.

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As mulheres feministas, no começo de toda uma trajetória de luta, foram classificadas como não sendo “verdadeiramente” mulheres, essencialmente pela sua pretensão a usurpar domínios tradicionalmente masculinos e pelo questionamento do destino, que se supunha ser “naturalmente” o seu: o casamento e a maternidade.

Nos tempos atuais, esses esteriótipos já caíram por terra, porém esses ideais ainda recaem sobre a mulher lésbica, pois sua orientação sexual automaticamente renuncia a presença do homem em suas relações que gera o entendimento errôneo de ser uma relação estéria, além de subverteram toda uma norma de dominação heterossexual centrada.

Mas isso em hipótese nenhuma requer que essas estruturas sociais patriarcais não perpassem pelas relações lésbicas.

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As “questões lésbicas” situam-se, em suma, na intersecção da dupla condição de lésbicas, de mulheres e homens gays, partilhando, como sublinha Castells (1998), com os gays, a luta contra a homofobia e com as feministas, a defesa dos direitos econômicos e reprodutivos das mulheres.

Mas, como nem as identidades de gênero, nem as identidades sexuais são concebidas de forma unívoca, a teorização sobre o lesbianismo enfrenta a necessidade de atender a esses entendimentos múltiplos, sob pena de alienar parte do seu público-alvo.

O problema da definição do que seriam as “questões lésbicas” são perpassadas pelas diferentes visões do que significa ser mulher e do que é o lesbianismo.

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A questão não parece residir apenas no seu conteúdo, mas mais propriamente no facto de se privilegiar uma ou outra dimensão de pertencer: para as mulheres que privilegiam o pertencer à categoria “mulher”, a aposta situa-se primariamente na crítica ao patriarcado, de onde decorrem as restantes problemáticas, e na ligação ao feminismo; para as que privilegiam a pertencer à categoria “lésbica”, a aposta situa-se primariamente na crítica ao heterossexualismo e na ligação ao ativismo gay.

Estas dificuldades traduzem o fato de as identidades – e, portanto, as identidades lésbicas – serem histórica e socialmente contingentes. Ao tomar como objeto as “questões lésbicas”, a teoria lésbica está sujeita a mudar de acordo com o objeto que é inevitavelmente instável, situado numa zona de fronteira, e enfrentando a necessidade de atender a entendimentos múltiplos das identidades sexuais e de gênero (e da ligação entre ambas), que têm também impactos na sua agenda política.


Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento, desta maneira, abrimos espaço para profissionais que possam tratar de temas mais especificamente.

Millena Braz é formanda em Comunicação Social Rádio e TV e bolsista CNPQ, com pesquisa na área de gênero, sexualidade e pornografia.

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