História de um Casamento é o novo filme do diretor Noah Baumbach (também diretor do meu queridinho Frances Ha). O título do filme é direto: é sobre a história de um casamento, mais precisamente, sobre o fim dele.
É silencioso, leve e angustiante.
A interpretação de Scarlet e Adam é incrível, você se sente sufocado em ver os olhos marejados de Scarlet (Nicole) em cada cena ao falar sobre o fim, você sente dor ao ver a expressão de desolação de Adam (Charlie) em muitos momentos. O roteiro é perfeito.
Noah sabe como esmiuçar bem as relações humanas em cenas rápidas, porém mágicas. Sabe quando você não sabe dizer o que é, mas olha uma cena e sabe exatamente o que está acontecendo? É assim.
O filme começa com Nicole e Charlie falando um sobre o outro: as qualidades que cada um tem e que são admiradas. São elencadas grandes características e muitas sutilezas também, que só com anos de convivência poderiam ser percebidas e só com amor poderiam ser notadas a ponto de entrarem em uma lista de qualidades.
A sensação que tive logo no início é que há um grande respeito e admiração recíproco, mas algo impede a continuação dessa relação. E só ao longo do filme vamos identificando o que é.
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Nicole sente-se aprisionada, estagnada, não ouvida. Ela tem vontades, desejos que sente ter deixado para trás ou em segundo plano em prol de algo que “teoricamente” estava sendo construído juntos, mas que na verdade, era algo de Charlie.
Ao longo da relação, Nicole vai se apequenando e se desconhecendo. Ela passa a ser uma extensão de Charlie. Na minha opinião, não chega a ser um relacionamento abusivo, não é uma relação violenta, entendem? Mas, em algum momento, a relação deixa de ser saudável para Nicole.
É Nicole quem sente o apagamento. Se ela quisesse apenas trabalhar com teatro, amasse Nova York e não quisesse aprender a dirigir, talvez o casamento não tivesse acabado, mas ela quer um pouco mais, ela sente que pode ter, ser e fazer mais. Não é mais o relacionamento que Nicole deseja, embora por muito tempo tenha sido (ou apenas ela foi levada a achar que queria…).
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Há ainda um grande carinho e, como eu disse, admiração de Nicole por Charlie e vice-versa, mas há também vários desejos que pulsam dentro do corpo dessa mulher, que é jovem, mãe e uma promissora atriz.
Nem sempre o que deve encaixar, encaixa
Nicole é uma excelente atriz. Ponto. Charlie é um excelente diretor. Ponto também. Parece perfeito, não é? Mas mesmo o que aparentemente não tem problema algum ou que encaixa perfeitamente, não encaixa mais… Tem algo (que falta) ali, sabe?
E nem é o caso extraconjugal de Charlie, que sim, aconteceu e, sim, machucou Nicole e vem à tona durante o processo de divórcio, é todo o contexto que inclusive Charlie usa de justificativa para seu caso, que em pouquíssimos momentos aparece na trama porque de fato não é o ponto principal.
Pelas falas de Nicole você percebe que esse não é o real problema para ela, ainda que ela o mencione e de ser um ponto de dor.
E quem é Charlie?
A identificação com Nicole é imediata. Nós, mulheres, estamos já há algum tempo discutindo essas questões relacionadas à maternidade, carreira, relacionamentos…
Essa tríade que nem sempre se consolida da melhor maneira possível (se há possibilidade disso). Nicole sente-se silenciada, como um chaveiro de Charlie, “endeusada”, mas sempre à sombra dele, cedendo às suas vontades… Pelo que percebi, não sequer me parece que Charlie se dá conta disso.
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Inclusive, Charlie… Charlie chega a ser uma figura nebulosa para minha percepção em vários momentos. Mas, no final, chego à conclusão de que ele é apenas um homem vivendo o curso natural dos acontecimentos para os homens dentro de um sistema que estruturalmente forma subjetivamente os homens e mantém seus privilégios (a palavra está chata, mas é necessária).
Charlie é um homem charmoso, atraente, boa pessoa, responsável, inteligente. Ele é admirável, grande, um gênio, talentoso. Todos gostam dele: a família de Nicole inteira, o filho, os colegas de trabalho. Parece realmente ser uma pessoa agradável de se conviver. Mas Charlie é um homem. Ele não se dá conta (como muitos ainda não se dão) do poder que tem na relação e de como a mesma anda à medida de seus desejos, que são o centro e que custam os desejos de Nicole.
Charlie admira Nicole, ela é sua “atriz preferida” e até certo ponto é possível dizer que a respeita, é possível até conjecturar que há ainda amor, mas Charlie não olha para Nicole da mesma maneira que se vê. Ao longo do processo do divórcio, com o cerco se fechando, as coisas complicando, o dinheiro acabando, isso vai se tornando mais claro ainda. Charlie precisa tomar decisões que estão entre o desenvolvimento do seu trabalho e a sua presença na vida do filho.
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Parece uma decisão impossível de ser tomada para ele (essa decisão parece ser sempre impossível para os homens, não é?!)! Porque ele parece não suportar a ideia de ter que abrir mão do que teve por tantos anos: seus desejos de ordem profissional, as coisas confortavelmente adequadas a ele. Aquilo que alimenta seu ego, aquilo que dá sentido à sua vida, o seu trabalho.
Nora: a persona necessária
Nora é a advogada de Nicole. Para ser bem sincera, sua entrada, no começo, me causa uma certa agonia. Eu gostava da ideia de eles não quererem envolver advogados no processo de separação… Romântica, eu. Depois, percebi que a entrada de Nora é primordial para Nicole. Nora é uma advogada experiente, cara, cheia de contatos, feroz, muito inteligente, estratégica, famosa por questões de divórcio, gananciosa e… humanizada… É, humanizada, vamos assim dizer…
Por causa de Nora que nós somos apresentados aos porquês de Nicole se separar. É ela, e não o terapeuta, que para e pede: “Me conte tudo desde o começo”. Nora abre os olhos de Nicole sobre como as mães são vistas, sobre o mito da virgem Maria (leia mais aqui: ‘História de um casamento’ ou a síndrome das mães ‘Virgem Maria’).
É Nora (e não irmã, muito menos a mãe — que por sinal ama o Charlie) quem pergunta para Nicole: E o que é que você quer? Onde você quer morar? Parece que é a primeira vez que Nicole fala isso em voz alta.
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A verdade é que se o “divórcio” não tivesse sido tão duro e Nora não entrasse em jogo, deixando Charlie desorientado, desesperado e finalmente acordado, mesmo com a separação, Nicole continuaria a ceder para Charlie todas as suas vontades.
Se Nora não entrasse em cena, Nicole e Charlie talvez nunca teriam tido o maior de seus confrontos, o choro, o desespero de terem “entrado” num jogo tão duro de desejos realizados e não realizados, mágoas e, mesmo assim, muita consideração um pelo outro.
Talvez nunca teriam tirado de dentro de si as palavras engasgadas que nunca antes foram gritadas por respeito, amor, talvez?
A tempestade é necessária
Se o divórcio não tivesse sido tão duro, Nicole não teria se lançado para novos projetos, não teria começado a dirigir, por exemplo. Mas é verdade também que o que sabe sobre direção vem de anos de casamento com Charlie, um dos melhores diretores que ela conhece. Se não houvesse casamento, Charlie não teria ganhado a bolsa que ganhou, mas também se o casamento não tivesse acabado, ele não teria a possibilidade de iniciar trabalhos novos em Los Angeles — como Nicole sempre quis, aliás.
Uma cena, particularmente, durante um encontro entre as partes e seus advogados, me chama bastante atenção: os advogados tentam se entender amigavelmente, até porque são colegas de trabalho, todos se conhecem, e, além disso, o casal também quer manter uma relação de amizade, o que é dito o tempo todo, mas há muitos pormenores e o que está em jogo é a educação e relação com Henry, o filho.
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A conversa parece que terá que se alongar, pausa para escolher o almoço, os advogados já muito familiarizados com aquilo tudo, Charlie e Nicole se olham como que tentando entender o que afinal de contas está acontecendo. Como algo que é tão sério e dolorido para eles pode simplesmente ter uma pausa para escolher o almoço?
Charlie, que sabe cozinhar para si e é autossuficiente, não consegue sequer escolher o que quer comer. Nicole, irritada, escolhe por ele. É um suspiro no meio daquilo tudo. Eles se olham, ela sabe o que ele precisa, ele sabe por que ela fez isso. É uma cena rápida, um momento. Mas cheia de coisa dita ali. Eles estão se separando, mas também estão juntos nessa.
Outra cena interessante é quando Charlie conversa com seu advogado sobre a relação futura com o filho. O medo de não ser visto como quer ser visto, que não sei se é uma preocupação genuína com o filho ou apenas o medo de ter sua imagem borrada. Afinal, Charlie é Charlie. Mas as falas do advogado bonzinho são bonitas: ele vai crescer, isso é temporário, ele terá suas próprias opiniões sobre tudo isso. Mas, para isso, Charlie precisa tomar as decisões acertadas e, agora, essas decisões são de concessões que aparentemente ele nunca precisou fazer antes.
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Durante todo o divórcio, vemos Nicole e Charlie se esforçando para não entrarem no jogo dos advogados, mas acabam sendo levados… Parece que para chegar ao fim, não há outra forma se não passando pela tempestade. Nicole e Charlie não querem causar de maneira algum mal um para o outro. Mas enquanto as feridas não são cutucadas, não há possibilidade de uma resolução que seja, no fim (e somente no fim) boa para ambos.
Confesso: senti pena de Charlie muitas vezes, mas aquela pena que não me movimenta, até porque também senti muito orgulho de Nicole. Senti “pena” de Charlie, porque, como eu disse, não o via como um homem relapso ou “ruim”.
Na verdade, me parece só “mais um homem”. Apenas. Um homem que tenta fazer as coisas da maneira certa, que comete erros, um homem normal; só que um homem normal já é cheio de privilégios, apenas por ser homem já se encontra em uma relação geralmente “superior” dentro da conjuntura de um casamento, da vida!
A recusa de Nicole em continuar vivendo uma relação que não a permitia alçar voos maiores, ainda que houvesse toda admiração e carinho do mundo, era impossível de ser descartada. O casamento não era mais suficiente para ela, ainda que tenha trazido tantas coisas boas para seu próprio desenvolvimento, profissionalmente, por exemplo, e Henry, o filho.
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Charlie também teve vários de seus planos originários “estagnados” pelo casamento, filhos e etc., mas isso não o diminuiu como diminuiu Nicole. É isso que, em geral, os casamentos causam às mulheres. Infelizmente. Ainda é assim. Mesmo que o companheiro seja uma boa pessoa, às vezes ele é tão boa pessoa que não se dá conta de que pequenas coisas ao longo dos anos são tão danosas quanto grandes acontecimentos, aqui, por exemplo, volto ao assunto: o caso de Charlie nem é sequer o fato principal para a separação.
Já no final, Charlie canta para seus amigos: Being Alive, uma música de um musical da Broadway, chamado Company. A música é um momento de catarse de Charlie sobre o seu casamento. O que acabou. E como ele ainda vê o que teve. Estar sozinho, não é a mesma coisa que estar vivo.
História de um Casamento fala sobre amor. Invariavelmente fala sobre amor. E sobre como ele se transforma, sobre como em vários momentos existem tons de cores diferentes pintando uma mesma relação. Fala sobre como as pessoas mudam ao longo dos anos. Sobre como mesmo que haja a vontade de continuar, às vezes a melhor escolha é não continuar. Ainda que se queira, ainda que doa.
E fala também sobre como existem outras possibilidades de existência de uma relação após o fim dela. No caso de Nicole e Charlie, que têm um filho juntos e portanto não poderiam sumir definitivamente um da vida do outro, seria necessário enxergar uma outra possibilidade de viver essa outra e nova relação.
Ainda sobre o filme:
“História de um Casamento”, da Netflix, é bom — mas nem tanto assim — Por Isabela Boscov (colunista da VEJA);
Crítica | História de um Casamento — Filme da Netflix com Scarlett Johansson é APAIXONANTE!
Existiu um divórcio real por trás de ‘História de um casamento’?