Lá vai Boi de Pindaré: 60 anos de resistência

“Urrou, Urrou, meu novilho brasileiro, que a natureza criou”. (Foto: Ingrid Barros)

Texto de Carolina Martins, em colaboração ao SobreOTatame.com

Difícil encontrar um maranhense que nunca tenha escutado estes versos, gravados e eternizados na voz aguda e inesquecível de Mestre Coxinho, amo do Boi de Pindaré.

A toada Urrou do Boi foi eleita o Hino Cultural e Folclórico do Maranhão em 1993, sob a Lei estadual 5.699, e representa bem um momento ímpar da história do Bumba meu boi maranhense, no qual o Boi de Pindaré foi um dos principais protagonistas.

São Luís do Maranhão, anos 1930. O pós-abolição por estas bandas foi marcado por um intenso movimento de pessoas em direção à capital. Oriundas de diferentes regiões do estado, mas principalmente da Baixada Maranhense, elas vinham em busca de trabalho e novas oportunidades.

Leia também | Afeto, cultura e história: as brincadeiras do São João em imagens

A principal via de acesso a São Luís era o antigo porto, localizado na região da Praia Grande. Ali, as pessoas desembarcavam e iam se fixando nos arredores, sobretudo na região em que mais tarde se formou o Bairro de Fátima, conhecido à época como Cavaco. Uma destas pessoas que vieram nesse fluxo foi Bartolomeu dos Santos, que ficou conhecido nas rodas de Bumba meu boi como Beto Coxo e, posteriormente, Coxinho.

A morte do boi, cortejo pelo bairro de fátima (Foto: Ingrid Barros)

Nascido em 1910, no povoado Lapela, em Vitória do Mearim, Coxinho chegou em São Luís entre os anos 1920 – 1930 e passou parte de sua vida exercendo o ofício de estivador marítimo, trabalhando nas embarcações que traziam mercadorias que abasteciam a cidade. Assim como ele, outros companheiros de trabalho – entre estivadores, carregadores e catraieiros -, também vinham do interior do estado e ali no porto, criaram redes de solidariedade que se estenderiam para o universo do Bumba meu boi.

Nos anos 1940, eram os bois da ilha que comandavam os terreiros de São Luís. Mas, naquele período, já havia na cidade grupos formados pela gente do interior e que, mais tarde, dariam origem aos “sotaques”. Dentre eles, o famoso Boi de Viana agregava as pessoas vindas da Baixada e das proximidades e que se identificavam com o batuque característico de sua região, como por exemplo, João Câncio dos Santos, Apolônio Melônio, José Apolônio e Coxinho, todos estivadores.

Leia também | Matracas que se reinventam: o Boi de Maracanã em 2020

O Boi de Viana se diferenciava dos outros grupos de Bumba da ilha pelo ritmo, pelos tipos de instrumentos de percussão e pela indumentária de seus brincantes. A turma de Viana ficou conhecida nas rodas de boi e foi, inclusive, fotografada pelas lentes do fotógrafo francês Marcel Gautherot. Por questões internas, próprias do universo dos Bumbas, uma dissidência nesse grupo provocou a saída de parte dos brincantes nos anos 1960 que, logo em seguida, organizaram um novo grupo: o Boi de Pindaré.

A morte do boi, cortejo pelo bairro de fátima (Foto: Ingrid Barros)

A fundação do Boi de Pindaré é carregada de simbolismo. Na noite do dia 15 de maio de 1960, os brincantes atravessaram o Rio Anil em canoas em direção à Praia da Ponta d’Areia. Foi ali, nas areias alvas daquela praia, aos pés da sereia, que o grupo foi fundado, em homenagem aos Santos Juninos – São João, São Pedro e São Marçal -, mas também como uma obrigação aos encantados.

E ficou determinado que aquele novo grupo se chamaria Boi de Pindaré, em homenagem à cidade natal de seu dono, João Câncio, mas também como uma referência à região da baixada e seus arredores, de onde fazia parte a maioria dos integrantes, como por exemplo, Apolônio Melônio, natural de São João Batista.

Leia também | O São João do Maranhão não para nunca!;

Desde então, o Boi de Pindaré passou a ser uma referência para os recém chegados à São Luís, que buscavam o grupo devido à identificação regional, mas também em busca de trabalho. João Câncio e grande parte dos integrantes do boi eram filiados tanto ao Sindicatos dos Estivadores (marítimos) quanto ao Sindicato dos Arrumadores (estivadores terrestres) e, devido a estas articulações no mundo do trabalho, conseguiam empregar na estiva aqueles que os procuravam.

A morte do boi, cortejo pelo bairro de fátima (Foto: Ingrid Barros)

Assim, o boi passava a ser uma extensão do universo do trabalho, onde estas pessoas construíam espaços de sociabilidade e redes de solidariedade. João Câncio também foi responsável por realizar inovações no Boi de Pindaré, como por exemplo, no ritmo – que passou a ser mais cadenciado, em comparação ao Boi de Viana -, e nas indumentárias dos brincantes.

Dessa forma, Câncio acabou “criando” um novo sotaque de Bumba meu boi em São Luís: o “sotaque do Pindaré”, que foi reproduzido nos inúmeros grupos representantes desse estilo que surgiriam a partir dos anos 1970 na cidade.

Leia também | Nina é, Nina foi, Nina sempre será: o batalhão do Boi de Nina Rodrigues;

Em 1972, a gravação do disco “Sotaque do Pindaré” trouxe mais destaque ao grupo. As toadas gravadas levaram, para além dos limites do Maranhão, as vozes desses cantadores e a representação de um universo desconhecido para muita gente. E foi daí que o Boi de Pindaré ganhou o mundo, realizando viagens para apresentações em outros estados e até mesmo no Programa do Chacrinha.

Após a morte de João Câncio, o Boi passou para as mãos de outros estivadores que, com igual zelo, cuidaram da boiada. Primeiro, Maurício Fonseca, que comandou o boi entre 1982 a 1985 e depois Sebastião Arouche, que ficou à frente do Pindaré até 2003, quando faleceu. Foi também após os anos 1970 que as dissidências entre os brincantes deu origem a novos grupos representantes do sotaque do Pindaré em São Luís

A morte do boi, cortejo pelo bairro de fátima (Foto: Ingrid Barros)

Atualmente, o Boi de Pindaré é comandado por Benedita Arouche, filha de Sebastião, de quem recebeu a ordem para cuidar do grupo. Desde então, o poder feminino na brincadeira ganhou maior destaque, com a presença de outras mulheres que auxiliam Benedita na sua missão de comandar da boiada.

Leia também | São João em tempos de isolamento social: Caio Zito cria versões alternativas de bumba-meu-boi;

Para elas, os desafios são muitos, pois ainda hoje o universo dos Bumbas continua bastante masculino. Mas, ao mesmo tempo, junto aos desafios, o boi traz para estas mulheres um sentimento de liberdade, alimentando a coragem para se livrarem de situações de opressão.

O Boi traz a liberdade e alimenta a auto estima não só das mulheres, mas também de muitos jovens das comunidades, principalmente do Bairro de Fátima, que todos os anos aguardam o mês de junho para se tornarem cazumbás, vaqueiros, índias, índios, Catirinas e Pais Franciscos nas ardentes noites de junho ludovicenses.

Neste ano, em que completa 60 anos de existência, o Boi de Pindaré se reinventa e se adéqua à esta nova realidade de um São João à distância. Para comemorar a data tão especial, o grupo lançou recentemente um novo álbum que está disponível no Youtube e no Spotify, além de vídeos que contam a história e apresentam o cotidiano deste boi que têm se firmado ao longo do tempo como um dos grupos mais importantes para a história do Bumba meu boi do Maranhão.


Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento, desta maneira, abrimos espaço para profissionais que possam tratar de temas mais especificamente.

Carolina Martins é historiadora, pesquisadora e brincante.

Pablo Monteiro é documentarista e idealizador da Bicho D’Água.


Mais do São João do Maranhão

Durante o mês inteiro de junho, traremos um material especial sobre o São João do Maranhão. O objetivo do SobreOTatame é trazer à memória os dias alegres que já vivemos e ainda viveremos, dar voz aos principais atores e atrizes dessa época e alimentar o nosso amor por essa festa.

Abaixo, alguns dos materiais produzidos:

– Série de fotos mostra porque o São João do Maranhão é apaixonante;
– São Pedro não é Lollapalooza! A Casa das Minas não é show!;
– E a melhor época do Maranhão chegou!;
– Ainda Escuto Álbuns #12: o íntimo e o popular de Samarone em “Toada Moderna”;
– 
Complexo Cultural do Bumba Meu Boi é eleito Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco;
– A vanguarda e o tradicional no Festival BR 135 2019.

administrator
Cidadania | Comportamento | Cultura. Criamos conteúdos e acreditamos que o palco de luta é a vida, o nosso tatame de aprendizados diários. #SobreOTatame

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
mais recentes
mais antigos Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários