(Arte: Reprodução/Internet).
Texto de Carlos Everton, em colaboração ao SobreOTatame.com
Do que falamos quando falamos em uma Literatura LGBTQIA+?
“Existe uma grande discussão se existe uma ‘Literatura LGBT’ ou uma ‘Literatura com temática LGBT’. Porque quando afirmamos que existe a primeira, é como se nós afirmássemos que necessariamente só quem pode fazer a leitura daquele material fosse a população LGBT. Mas a gente sabe que a Literatura transcende essas barreiras. Eu prefiro usar o termo ‘Literatura com temática LGBT’ porque aí está aberto para qualquer pessoa de qualquer orientação sexual e identidade de gênero fazer a leitura”, defende Carlos Wellington, maranhense, bibliotecário, mestre e doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), escritor e homem gay.
Nem a Literatura com personagens LGBTQIA+ e nem escritores desse seguimento populacional são ocorrências recentes. Wellington aponta que o primeiro personagem homossexual na Literatura brasileira, ainda sob um estigma patologizante, veio em Um homem gasto, romance de Ferreira Leal de 1885 e que precedeu Bom crioulo, de Adolfo Caminha (1895).
Uma das autoras preferidas do bibliotecário, Cassandra Rios, foi a primeira mulher a vender um milhão de livros no Brasil, mesmo com a censura e perseguição que lhe foi imposta durante os anos de chumbo da Ditadura Civil-Militar, por seus romances carregados de conteúdo sexual lésbico.
Mesmo com essa carga histórica, a literatura com temática LGBTQIA+ ainda é segregada e envolta em polêmicas. Mais de três décadas após o fim da Ditadura que perseguiu Cassandra Rios, outras formas continuam a ser impingidas àqueles que não se encaixam na heteronormatividade – desde a colocação de avisos de conteúdo em obras que abordem a temática até casos mais graves como no da Bienal do Livro de 2019, no Rio de Janeiro, em que o então prefeito Marcelo Crivella determinou o recolhimento de publicações que representavam pessoas LGBTQIA+.
Entre outras questões, a representatividade foi discutida na Live do Orgulho “O mercado editorial e os acervos LGBTQIA+ em bibliotecas”, promovida pelo Conselho Regional de Biblioteconomia da 8ª Região – São Paulo (CRB8SP), por sua Comissão Temporária da Diversidade, na qual, além de Carlos Wellington, foram palestrantes o também bibliotecário Cristian Brayner e Nathália Romeiro, que coordena o Selo Editoral Nyota juntamente com Franciéle Garcês. O debate foi mediado por João de Pontes Júnior, Conselheiro do CRB-8.
Brayner defendeu que a temática LGBTQIA+ é necessária à Literatura não apenas porque esse seguimento da população é composto por cidadãos pagadores de impostos e que querem e têm o direito de se ver representados mas também porque vivemos num país e num mundo que ainda mata e discrimina pessoas LGBTQIA+ assustadoramente. Assim, abordar essa temática na literatura é uma forma de combate a essa violência.
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Wellington identificou como um dos grandes entraves à diversidade na Literatura o fato de que os grandes grupos editoriais, preocupados com o lucro, buscarem a representação da hegemonia binarista que impera na sociedade.
Abordou pesquisa da Professora Regina Dalcastagnè, da UNB, Personagem do Romance Brasileiro; nela, a professora evidencia que, em diferentes marcos temporais da literatura brasileira, quem escreve e quem é representado é homem, branco, cis, hétero, das regiões sul e sudeste e da classe média.
Porém, asseverou que existe resistência a essa hegemonia, citando como iniciativas dentro dessa contra-hegemonia os trabalhos de: Vagner Amaro, que tem a editora Malê/RJ, que trabalha com a divulgação de autores e autoras negras, LGBTI+ e da periferia; Kette Valente, da livraria Africanidades/SP, que trabalha com a potencialização de mulheres negras da periferia; Francilene Cardoso, de São Luís/MA, com a Livraria Lekti, divulgando uma Literatura preta e feminista; além do selo Nyota, que é tocado por Franciéle Gomes e Nathália Romeiro, que seguiu à fala do palestrante.
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Romeiro, como coordenadora do Selo Nyota, faz parte dessa resistência. O selo se dedica à publicação de obras científicas produzidas por mulheres, negros/as, indígenas e população LGBTQIA+. A palestrante citou a pesquisa do Sindicato do Livro que demonstrou que o consumo e produção de livros cresceu no último ano; por outro lado, o crescimento se deu principalmente com relação a obras de cunho religioso, voltadas às religiões judaico-cristãs. As publicações científicas, entretanto, caíram. Isso é sintomático, pontuou, da época em que vivemos e dos ataques sofridos pela ciência e cultura.
Iniciativas assim, frente aos gigantes do mercado, ainda são tímidas. A aversão à literatura com temática LGBTQIA+, entretanto, é carregada de hipocrisia e não apenas porque essa população representa parcela expressiva da sociedade.
A verdade é que não é a representação que incomoda, mas o modo como ela se dá: o gay que é motivo de chacota, a lésbica estereotipada, a travesti e pessoa trans que são vilanizadas, prostituídas e ridicularizadas – todos esses arquétipos estiveram presentes nas obras escritas por eras, sob aceitação geral. O que incomoda é a humanização dessas pessoas; é a possibilidade de encará-las como reais, protagonistas e, enfim, como espelho. “Faço menção à formulação teórica da Djamila Ribeiro com o ‘lugar de fala’”, defende Wellington.
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“Por mais que a literatura permita o exercício da criação – um homem escrever por uma mulher e vice-versa – é importante que a pessoa que vivencia, que experiencia, que sabe as dores, que sabe a delícia de ser seguimento de minorias sociais para expressar de forma mais real, mais contundente os seus sentimentos, apreensões, dificuldades que permeiam o cotidiano. E a literatura também tem essa função, de representar o cotidiano. E quanto mais autores e autoras LGBTs nós tivermos, quanto mais conteúdos e narrativas voltadas a esse sentimento, é interessante porque as pessoas se olham. É a questão da representatividade. Você se vê naquela história, naquele personagem”, acrescenta o escritor.
A representatividade não serve somente aos representados, porém, tampouco é a literatura um espelho estático. Historicamente, o papel de retratista que escritores e escritoras carregam tem possibilitado denúncia, resistência, reação. Afinal, para se opor a algo, é preciso minimamente conhecê-lo (quanto melhor conhecer, menos burra parecerá sua oposição, se é que restarão motivos para ela – fica a dica). E a literatura possibilita esse encontro com diferentes realidades, diferentes facetas do que é real e pode nos ser invisível pela distância – geográfica, sentimental ou social. A literatura constroi pontes.
Mas não é compromisso da literatura apenas o retrato da realidade. Ao revés, por ela podemos exercer o nosso não proclamado Direito de Sonhar, como defende Eduardo Galeano. Uma amiga me disse uma vez que ela não aguenta mais histórias com temática LGBTI+ que retratam só sofrimento e drama, que ela procura coisas mais leves. Já meu namorado, há pouco tempo, viu um filme em que tudo era felicidade para terminar em tragédia: “fiquei mal, amor. Mas parece que é isso mesmo: viado veio a esse mundo pra sofrer”.
Ninguém veio a esse mundo para sofrer. A vocação primária do ser humano é a felicidade, é isso que todos buscam, cada um a sua maneira. É isso que tentam dizer que nos deve ser negado. Assim, a literatura que nos permite fantasiar e sonhar, aquela em que podemos ser heróis e heroínas, príncipes e princesas, amados e amadas – em que podemos ser felizes, enfim, sem medo. Essa também é muito bem-vinda.
Toda gente precisa ter seu pedacinho de chão de sonho em que dê para se refugiar quando o mundo de fora for demasiado, pesado; e também que permita voltar ao mundo depois, com força para caminhar e quem sabe até força para mudá-lo.
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E é assim que eu acredito que os livros, as letras, não são apenas um lugar para onde corremos e nos isolamos. A literatura pode sim ser um instrumento de transformação social, um combustível para mudança. Conferindo os dados de realidade necessários para conhecer aquilo que queremos mudar; ânimo, coragem e força para promover essa mudança; e acalanto também, para as batalhas perdidas, para as vidas ceifadas – que infelizmente, continuam inúmeras.
E é urgente para nós, LGBTQIA+, que essa mudança aconteça, porque já perdemos vidas demais. É urgente que conheçamos e mudemos, mas também que outros o façam e engrossem as fileiras dessa luta.
A arte, como produto e reflexo da sociedade, é plural e deve ser livre. Por meio dela e muito particularmente da literatura, é possível por empréstimo vestir a pele e olhar pelos olhos de outras pessoas. Sentir como sentem. Primeiro e poderoso passo para um exercício efetivo daquela tão necessária no caminhar para dias melhores, tão falada e tão em falta: a empatia.
*Agradecimento especial ao bibliotecário e escritor Carlos Wellington Martins, pela colaboração.
Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento, desta maneira, abrimos espaço para profissionais que possam tratar de temas mais especificamente.
Carlos José Penha Everton é maranhense, nascido e criado em São Luís. Graduado em Direito, apaixonado por toda forma de arte, adora ler e, de vez em quando, se mete a escrever também (agora, no SOT). Twitter: @cjpe19. Instagram: @cjpeverton.