(Foto: Ludovic Bertron/ Wikicommos).
*Texto escrito conjuntamente por Alderico Segundo e Ronaldo Serra.
Este texto é sobre muitas coisas, mas principalmente sobre aquelas pessoas que estão cansadas de ouvirem sempre o outro determinar quem elas são ou qual o seu lugar e papéis que exerce na sociedade. Nossa comunidade LGBTQI+, ao mesmo tempo que avança, retrocede no sentido que lutamos por justiça social, mas nunca por justiça entre nós.
Diariamente somos capazes de fazer publicações sobre o quanto a empatia e adesão à nossa causa é necessária, mas esquecemos de promover empatia entre nós mesmos. Em meio a tudo isso, não basta só julgar, é necessário condenar, surgindo uma expressão que muitos certamente já ouviram falar, cancelamento, afinal é muito mais fácil cancelar aquilo que nos causa estranheza do que tentar manter diálogo aberto, franco e pedagógico, no sentido de construir novos valores.
Leia também | Um gay dálmata para chamar de seu
Mas por qual motivo pensar em construir novos valores? O que nos levaria a querer construir com o diferente, saindo da nossa zona de conforto de fada sensata, que prefere likes a de fato compreender o que realmente ocorre? Será que de fato é sempre o/a outro/a que está sempre errado/a? Diante da vivência cruel que todos nós LGBTQI+ passamos ao decorrer de nossa existência, é possível que em nossa essência alguém de fato exerça o papel de vilão?
Reclamamos constantemente que a heteronormatividade nos oprime, mas quantas vezes nossas bolhas não tentam oprimir a nós mesmos/as?
Artistas, blogueiros/as, políticos/as, digitais influencers, estudantes, enfim, há uma série de postos que LGBTQI+ ocupam hoje, fruto de muita luta e sangue, afinal avançamos muito em conquistas de direitos, mas quanto de fato avançamos enquanto comunidade, no sentido de fortalecer a nossa união interna? É mais cômodo julgar do que acolher? Para muitos, parece que sim, por este motivo se tornar mais fácil “cancelar”, ao invés de dialogar.
Leia também | Seis filmes para entender a luta contra a homofobia
À luz de Bauman, isto ocorre por vivermos em uma sociedade líquida onde o caráter reflexivo e a noção de progresso coletivo dão lugar à busca do prazer individual. É bem mais fácil, portanto, cancelar as pessoas do que fato sentar frente a frente e construir algo pedagogicamente produtivo com alguém.
Lamentavelmente tais práticas sabotam nossa luta e favorecem o ultraconservadorismo que se alimenta das nossas fraquezas. Ou vai dizer que nunca ouviu frases do tipo “esses viados são todos desunidos”, isso mesmo, “viados”, pois pra quem pensa desta forma, LGBTQI+ é apenas um amontoado de letrinhas do que um grupo que possa significar unidade, reduzindo todas nós em uma coisa só.
Leia também | Gênero e sexualidade nos entraves de um feminismo lésbico
A esta altura, você já se perguntou de que adianta a opinião de um heterossexual a nosso respeito. Se você não sabe, vivemos uma constante batalha, lutando por espaços sociais justos, é uma guerra, mas não contra heterossexuais e sim contra a heteronormatividade impositiva. E para batalhar bem, é preciso conhecer seu oponente bem.
O objetivo deste texto não é apresentar verdades e tampouco julgar seus hábitos e opiniões, mas fazer refletir sobre quão relevante é essa estratégia de cancelamento e ataques, a fim de identificarmos o que de fato nos leva a uma construção coletiva.
Leia também | “Secreto e Proibido”: um amor que versa sobre luta, resistência e permanência
Não estamos todos no mesmo barco, é um fato, pois cada letra da sigla LGBTQI+ representa uma vivência histórica específica, permeada de outras micro histórias que se diferenciam umas das outras. E aí eu te pergunto: qual história você quer contar?
Uma pergunta que nos faz pensar por dias e refletir que tipo de resposta daremos nesse momento. Nós, LGBTQI+, temos várias histórias pra contar, histórias que começam desde a escolha de nosso enxoval no nascimento, passando pelo o que devemos fazer com nossos corpos quando adolescentes e as nossas escolhas profissionais quando adultos/as.
Leia também | Pessoas que Inspiram #6: Júlia Naomí e o seu jardim
Sim! Tudo é pensado pela heteronormatividade, nosso jeito de falar, de se vestir, de brincar, e sim, o jeito com o qual lidamos com as pessoas quando questionamos suas formas “sem querer” de reproduzir LGBTfobia em suas práticas cotidianas, ou seja, ao questionar, refletir e expor nossa opinião somos taxados/as de “loucas”, “agressivas”, “violentas”, “histéricas”, entre outros adjetivos bem peculiares.
Entre tantas histórias que queremos contar, de todas, é um dia, poder contar coisas bonitas, passar pela vida e no final, não levar as marcas injustas que nos foram impostas. Dizer, que no final das contas, somos um ser humano como outro qualquer, passível de erros e acertos, e que, sobretudo, podemos recomeçar, quantas vezes forem necessárias! É direito nosso, de todas/os nós: o recomeço, a magia de aprender sempre, conhecimento é o que nos cabe nesse mundo já poluído de sentimentos e valores cruéis.
Ah! O conhecimento é luz! Como já nos mostrava os antigos filósofos. Que tal sair da caverna e ver a luz do mundo?
Leia também | A visibilidade do movimento LGBTQI na música maranhense
Porque quando cancelamos alguém, reforçamos que não a conhecemos profundamente, APENAS olhamos o superficial o que está sendo exposto; a história ou as histórias dessas pessoas que já foram canceladas, você não conhece! E, nem mesmo sendo da mesma família, sentimos a dor do/a outro/a ou mesmo a alegria. Quando cancelamos alguém, a gente precisa refletir sobre alguns pontos:
- Esse comportamento é violento e pode causar sérios danos às pessoas canceladas;
- O binarismo “certo/errado” é algo que está em todos nós, ou seja, aquele se julga certo/a em um determinado momento da vida já foi errado/a e por isso, NÃO TEM aptidão para decidir, na lógica do cancelamento, quem é certo/a ou errado/a;
- A gente tem que CANCELAR IDEIAS e não pessoas; pensar que pessoas podem mudar por meio de um diálogo, de uma troca de conhecimento, de uma escuta, de um acolhimento, empatia, saca?
- Cancelamento não é desconstrução! Pessoas que cancelam tendem a dizer que são desconstruídas quando, de fato, estão reproduzindo um pensamento fundamentalista, heteronormativo, gordofóbico, embranquecido e elitista. Ou seja, nada de novo;
- Cultura do cancelamento não é JUSTIÇA! Cancelar uma pessoa com a desculpa de que está prestando serviço à ordem jurídica ou à serviço de seu dever como cidadã/cidadão não é tarefa nossa. Se a pessoa em questão não aceita o processo da mudança de comportamento que fere o/a outra, DENUNCIE a quem de fato pode cuidar disso com a forma punitiva devida, ou seja, a polícia tá aí pra isso!
Poderíamos fazer um livro sobre isso, mas para abrir ao diálogo sobre cancelamento, pedimos aos leitores/as que reflitam sobre esses cinco pontos. E quando deixamos essas afirmativas para vocês, não significa que somos impositivos nas ideias. É a nossa avaliação sobre o que pensamos para a cultura do cancelamento. E a sua, qual é?
Leia também | Entrevista exclusiva com Gaybriel e Wan Lo: “nossa voz será ouvida!”
Antes de responder, primeiramente sugerimos que você pense se está preparado/a para ser cancelada/o. Acreditamos que esse é o primeiro caminho para não reproduzir esse comportamento cultural. O segundo caminho seria o DIÁLOGO. Mas, e se não chegarmos a um consenso ou um acordo ou mesmo uma paz?
O SILÊNCIO pode ser uma saída, até que os ânimos acalmem, quem sabe retomar, depois, o diálogo. Entretanto, não se sinta mal por silenciar uma discussão ou mesmo excluir uma pessoa de suas redes sociais (não precisa bloquear). Acreditamos que isso não seja um cancelamento. O silêncio traz respostas que o excesso de palavras verbalizadas escondem. Silenciar não é ser covarde, silenciar não é “fugir pela tangente”. Ah! O silêncio também é poesia, e poesia não é só alegria, poesia é uma busca constante pela paz…
Então, neste Dia Internacional do Orgulho LGBT, perguntamos: qual é o seu orgulho? De quem você tem orgulho? A quem você orgulha?
Leia também | Gaymada: um torneio de acolhimento e resistência contra o preconceito
Seria um dia de muita celebração, mas celebrar o quê? A poc, cancelada por usar um cropped? A drag queen cancelada que “não sabe se maquiar” ou cantar ou usa barba? O gay, cancelado porque furtava pra sustentar seus vícios, mas que soube se reerguer? A lésbica, cancelada por “se vestir como homem”? A transexual, cancelada por não ter “passabilidade”? O bissexual, cancelado porque ficar com homem e mulher é muito confuso? A pessoa, preta cancelada porque namora uma branca? A pessoa gorda, cancelada porque tá de biquíni na praia? A artista, cancelada porque não entende de política partidária? Os casais, cancelados porque expõem seus relacionamentos na internet?
Em algum momento, todos/as nós já fomos e já cancelamos alguém, não sejamos mais esse tipo de pessoa. Apoie o colega LGBT que passou por dificuldades, levante ele/ela do fundo do poço; façam maquiagens juntas, cantem juntas, dancem juntas; usem a roupa que quiserem; beijem quem vocês quiserem, façam amor, sejam amor; respeite o corpo da/o outro/a e no final das contas, teremos motivos pra dizer que nos orgulhamos de ser quem somos, e é isso que incomoda, afinal, as pessoas que cancelam desejam fazer o que fazemos, mas estão presas em suas teias de ódio e frustração.