Foto: Maria Clara Aboud / IESTI.
Por Caio D Carvalho, em colaboração ao SobreOTatame.
Para quem conhece o trabalho de Zeca Baleiro (ou pra quem já ouviu pelo menos “Vô Imbolá”, “Parque do Juraci”, “Bienal”, “Meu Amor, meu bem, me ame” e/ou “Heavy Metal do Senhor”), sabe de seu estilo criativo, de letras espertas, arrojadas… Bem traquinas, bem moleque, poderíamos complementar.
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Não é de se surpreender, portanto, sua total afinidade e destreza em compor músicas também para o público infantil, tal como podemos constatar ouvindo seus álbuns “Zoró – Bichos esquisitos, vol. 1” (2014) e “Zureta – vol. 2” (2018), este recheado de “malucagens e molequices”, como costuma brincar o próprio Baleiro – aliás, para quem não sabe, foi compondo músicas para o teatro infantil que Zeca começou sua carreira quando ainda morava aqui em São Luís do Maranhão.
Em razão da divulgação do seu show “Zoró Zureta” na capital maranhense, que reúne músicas destes dois álbuns e que ocorrerá dias 28 (às 16h e 19h) e 29 de setembro (às 15h e 18h), no Teatro Arthur Azevedo (TAA), Zeca promoveu uma coletiva – e o SobreOTatame não podia ficar de fora dessa.
Abaixo, um pouco do que rolou da conversa com este grande artista sobre o desafio de compor músicas para crianças e sobre os shows – cuja parte da renda será revertida para apoio a projetos sociais do IESTI (Estudos Sociais e Terapias Integrativas), que atendem crianças e jovens em situação de risco. De quebra, muitas informações legais a respeito da carreira de Zeca Baleiro:
[Sobre o Tatame]: Nos comentários dos vídeos das músicas dos álbuns Zoró e Zureta no Youtube, mães e pais (principalmente mães) são só elogios. Existe um enorme feedback positivo. “Eu e meu bebê adoramos!”, “Meu filho acha massa a música da onça pintada, é tão bom! Música de conteúdo infantil mas que agrada a todos – incluindo nós, adultos!”. Professores do ensino básico também comentam com entusiasmo. Até crianças com perfil na plataforma comentam: “Eu estou fazendo um trabalho do disco Zoró e minha música preferido a onça” (sic); “e muito bom demais meu tio me mostrou na aula de musica” (sic). Fale um pouco dessa experiência em compor músicas que agradam tanto crianças quanto adultos.
[Zeca Baleiro]: “Eu comecei compondo pra… Quer dizer, eu comecei compondo. Ponto. [Mas] o trabalho mais próximo do profissional que eu fiz, ainda morando aqui [em São Luís], foi para o teatro infantil, com 17, 18 anos. Trabalhei muito tempo no Beto Bittencourt, que foi um ator bonequeiro fantástico, genial, que infelizmente partiu muito cedo. Ele tinha uma companhia, o Grande Circo Pirilampo, a gente fazia desde animações de aniversário… Foi trabalhando com ele que comprei meu primeiro bom instrumento na vida. Depois, trabalhei com Lio Ribeiro, diretor de teatro daqui, que tinha o grupo Ganzola…. Eram trabalhos semiprofissionais… Eram amadores, mas já tinha a intenção, a missão de fazer uma coisa bem feita, caprichada e tal. Então eu comecei mesmo a ganhar algum dinheiro – por isso eu falo que era semiprofissional – trabalhando com teatro infantil. Que é uma experiência pro compositor de compor por encomenda… Você começa a compor pra compor uma narrativa, pra ajudar a contar uma história. Então, é um exercício artístico muito interesse.
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Eu era muito tímido quando adolescente, então tocar as trilhas ao vivo, junto ali com os atores, era uma prática muito boa pra me desinibir, pra aprender a me comportar em cena, essas coisas todas. Então eu comecei por aí… Esse trabalho [de músicas infantis] é uma volta às origens, de certa maneira.
“Quando a gente faz as coisas respeitosamente, respeitando a inteligência do público – coisa rara hoje no nosso Brasil [risos] –, às vezes acabam tendo a repercussão merecida, devida, né? Não tem muito mistério. As coisas dirigidas à criança às vezes têm pecado em tratar a criança como um débil mental, um ser de inteligência menor, o que é uma besteira – as crianças que estão na vanguarda aí do mundo; elas que vão conduzir, na cabeça despovoada delas, a grande poesia do mundo. O que eu fiz nas canções foi justamente tentar traduzir esta poesia com a qual eu tive muito contato quando meus filhos eram crianças. Eles eram muito intensos, imperativos… Sempre diziam coisas interessantes.
Às vezes, viajando com meu filho, ele olhou pela janela do avião e falou: ‘pai, uma árvore de nuvem’. Fui olhar e era uma nuvem em formato de árvore. Quer dizer: é dessa observação cotidiana, do dia a dia, que essas canções nasceram. E também da própria loucura, né? [risos]. A loucura da imaginação”.
Zeca Baleiro.
[SoT]: Existem vários autores consagrados da literatura adulta que já fizeram livros infantis: José Saramago, Clarice Lispector, Jorge Amado… Até Aldous Huxley, Gertrude Stein e Ian Fleming. Desses citados, dois fizeram os livros para seus respectivos filhos, e quase todos, com exceção de Gertrude (que não teve filhos, creio), já tinham filhos quando resolveram escrever algum livro infantil. Pra você, faz diferença produzir ou querer produzir algo para crianças antes de ser pai e depois de ser pai?
[ZB]: “Ah, faz, com o tempo acho que faz. No caso, eu compunha desinteressadamente… Não pensava que aquilo ali seria um trabalho profissional, que valia um disco. Num primeiro momento era só entretenimento mesmo. Pegava o violão, contava umas histórias que eu sabia, repertório de histórias acabadas e ficava inventando coisas em cima disso, a partir de falas deles, de conversas nossas e tal ou a partir de minha imaginação mesmo.
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Então, comecei a gravar. Falei: ‘pô, tô gostando dessas canções. Vou gravá-las’. Gravava num gravadorzinho. Tem uma situação engraçada a respeito, aliás. Minha filha dorme fácil, ela é dorminhoca e tal. Mas o pequeno, o Manu, era meio insone, puxou a mim, tem dificuldade pra dormir. E eu cantava pra ele, às vezes cansado, e quando saia do quarto, saia na ponta do pé. E o quarto tinha um assoalho. Na última passada fazia assim [imita som de rangido]. E meu filho: “bis! Bis!” [Risos]. “Mais um!” Então, pra ele era um show, uma apresentação. Pra mim era só uma coisa ali do momento, de pontes pra dormir mesmo. Funcional. E naturalmente eu falava um bando de besteiras, fazia coisas que não estão aí nos discos. Isso aí é um trabalho que eu considero apresentável.
Mas é difícil compor pra criança, eu acho. Porque você tem o desafio de se comunicar mais diretamente, sem perder a coerência com o que você faz, mas você tem que comunicar, tem que ter um ponto ali de contato imediato com a criança, que vem às vezes do lúdico, às vezes do absurdo também.
Criança tem imaginação absurda, no bom sentido. Mas não é muito simples não. Mas é fascinante talvez por isso, por esse desafio, de chegar à criança, de chegar com inteligência, com poesia, mas ser direto também”.
Zeca Baleiro.
[SoT]: Você já fez várias apresentações em São Paulo (SP) com o show “Zoró Zureta”, mas é a primeira vez que você o apresentará aqui em São Luís. O que podemos esperar desses shows? Fale-nos um pouco da dinâmica deles.
[ZB]: “O show conjuga músicas de um e outro volume. Tem seis músicos no palco: quatro meninas e dois rapazes. Todo mundo toca um pouco de tudo, faz percussão, faz vocais. Se revezam. O show tem um quê de performance, naturalmente, para ser sedutor para crianças. Não poderia ser um show engessado.
E tem muita interatividade também: eu boto muito as crianças pra falar em alguns momentos – não pode ser o tempo todo se não vira zorra, bagunça [risos]. Mas elas se manifestam, é muito bacana. Eu sinto até algum remorso de ganhar algum dinheiro com isso porque eu me divirto mais do que a plateia [risos].
Mas voltando: o show é curto, tem 1 (uma) hora de duração, um pouco mais a depender do dia, mas no geral é um show curto justamente pra ter aquele tino certeiro da atenção das crianças, porque elas dispersam muito rápido. Quando a coisa desinteressa, ela vai. E hoje a coisa da dispersão tá aumentada por causa dos celulares. As crianças estão com celulares cada vez mais cedo, com tablet, tudo isso. Então temos que ser muito visuais. Ajuda muito o fato de que mais da metade das canções têm projeções na tela. São clipes que a gente fez com vários animadores. São lindos e coloridos. Então tem esse apelo visual muito forte que ajuda a gente. Se fosse só música, só atitude ali no palco, talvez não fosse suficiente. Mas elas embarcam, cara. Tem sido muito bacana. Eu tive um certo temor, a princípio, de fazer esse tipo de show. As pessoas me cobravam, “faz uns shows desses discos”, eu: “não, tô muito velho pra me vestir de palhaço [risos], pra botar roupa colorida. Deixa só os discos”.
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Mas aí pintou um convite irrecusável de um teatro recém-aberto em São Paulo, o Teatro Opus, que é no shopping Villa Lobos. Fizeram uma proposta pra gente fazer quatro sessões. Aí eu falei: “vamos fazer”. Pra mim era só aquilo. Fazer, registrar o lançamento dos discos e acabou. Mas foi tão bom, rendeu tanta coisa, tanto convite, que fizemos mais de vinte shows em paralelo aos meus outros shows, para adulto. Aí ficou. Pintou esse convite com essa parceria com o IESPI.
Achei bacana e achei simbólico voltar ao Teatro Arthur Azevedo, onde comecei, lá no início, com 18, 19 anos, fazendo música pra criança”.
[SoT]: Em comparação ao vol. 1, no vol. 2 temos letras mais “espertinhas”, arrisco dizer mais arrojadas… Refletindo, talvez, uma evolução de idade do ouvinte-alvo, ainda que mínima. Pergunto: arriscaria dizer que se houvesse um volume 3 ou 4 (e esperamos que haja), estes refletiriam outra mudança de idade no ouvinte-modelo, culminando, quem sabe, com um ouvinte-modelo pré-adolescente?
[ZB]: “Cara, eu resisti muito a … Bom, quando eu mostrava este disco para as pessoas, pessoas do mercado, elas sempre perguntavam sobre essas coisas, sobre ‘público-alvo’, qual faixa etária para a qual seria destinada… Eu acho que o artista realmente não tem que se preocupar com isso, tem que criar… Mas eu me perguntava, por exemplo, para o show: que tipo de criança que vai? Qual a faixa de idade? Como a gente vai fazer o show para que seja compreendido por uma criança de 3 anos e por uma de 10, que já está com outros interesses, estimulado por outras coisas, pelo audiovisual, pelos games, que excita muito a mente das crianças – e dos adultos também. Então eu simplesmente fiz e arrisquei.
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Vi que as crianças se interessaram, prenderam a atenção. Nesse show de estreia que fizemos no Teatro Opus teve um senhor de 70 anos que foi sozinho. Pensei: “ah, deve estar esperando os netinhos chegarem”. Mas não: ele foi nas quatro sessões sozinho. Ele gostava das canções!
Por isso eu gosto de dizer que esse show é para crianças de todas as idades. Eu, na verdade, apesar de dizer que fiz essas canções pros meus filhos, eu fiz pra mim. Pra minha criança, na verdade. Porque é o tipo de música que eu gostaria de ter ouvido quando fui criança. Tem certas coisas que o artista faz pra si próprio.
Zeca Baleiro.
“Por outro lado, fazer coisa para adolescente é muito mais difícil. Eu fiz uma peça quando eu morava aqui ainda chamada ‘Quem tem medo do Curupira?’ que foi encenada em 2010 em São Paulo por insistência de umas amigas. É um musical sobre as criaturas da mata, o Saci, a Caipora, Curupira e Mãe d’água que se descobrem sem atrativo nenhum, pois não assustam mais ninguém. Ninguém mais se espanta com eles. Aí um deles dá uma ideia genial: ir para a cidade fazer um teste de popularidade. Aí eles chegam na cidade e ninguém se espanta com eles, pois há coisas muito mais assustadoras para se espantar. Aí tem toda uma saga em um tom de fábula. Um deles quer ficar lá, vira ‘mano’, o Curupira vira ‘mano’, não quer voltar, fica seduzido por aqueles confortos da cidade e tal. Pode-se dizer que [a peça] é sobre várias coisas, sobre o êxodo rural, a relação com o meio ambiente, mas enfim.
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O Teatro do Sesi, que fica lá na avenida Paulista, patrocinou, bancou uma temporada longa, gratuita, sempre com sessões lotadas. E eles tinham que colocar certa classificação – e colocaram na classificação ‘infanto-juvenil’, que não era originalmente para quem eu fiz. Na verdade, não sei pra quem exatamente posso dizer que escrevi. Não é nem pra criança, nem pra adulto. E o adolescente, lá no meio, um ser complicado. Mas colocaram “infanto-juvenil” e deu certo. Funcionou. Deu gente de todas as idades. Os atores e a diretora conseguiram dar um toque assim meio pop, mais adulto, com algumas referências, citações. Ficou divertido.
“Mas na verdade, voltando às canções do volume 1 e volume 2, elas são todas de uma mesma época. Talvez a natureza do tema, o primeiro é mais sobre bichos, um fascínio maior para crianças, talvez leve as coisas para um lado ainda mais infantil, e o segundo tem umas brincadeiras verbais, de trava-língua, jogos de palavras, que as crianças adoram, e que é uma diversão muito minha. Reflete minha vivência no interior. Eu só nasci em São Luís por acidente, pois minha família toda é da baixada, de Arari, e eu vivi oito anos lá e continuei indo durante as férias e tal. E lá tem um repertório muito interessante de brincadeiras, de trava-línguas, parlendas, cantigas de roda, tudo isso.
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E confesso que tenho a memória muito boa, então eu guardo essas coisas. Muito do que faço vem bastante desse imaginário, que é meio português, meio negro, meio árabe, tem uma população meio sírio-libanesa ali muito grande. E meu pai sempre gostou disso, de fazer esse tipo de brincadeira, ‘advinha’, charadas, que é muito lúdico para a criança. E isso acaba restaurando um pouco essa importância da palavra em meio a um mundo cheio de imagens, onde as crianças são expostas muito cedo a muitas coisas, o tempo todo”.
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Caio D Carvalho é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Estrategista comunicacional (vários campos de atuação e interesse, incluindo alguns cujos profissionais são conhecidos por outros nomes). Espírito de acadêmico (lato sensu). Músico-baterista. Enxadrista passional, mas ainda enxadrista. Para conhecer mais do trabalho dele, pelo e-mail: cmgdcarvalho@gmail.com.
Show Zoró Zureta
Quem: Zeca Baleiro e banda;
Quando: dias 28 (às 16h e 19h) e 29 de setembro (às 15h e 18h);
Onde: Teatro Arthur Azevedo (Rua do Sol, Centro);
Quanto: R$ 80 Plateia e Frisa; meia entrada R$ 40), R$ 70 (Camarote, Balcão e Galeria; meia-entrada: R$ 35) Ingressos à venda: https://teatroarthurazevedo.byinti.com, bilheteria do Teatro Arthur Azevedo e Loja Fotosombra do São Luís Shopping.