A segunda roda de conversa Mulheres Negras: protagonistas na cena cultural (Foto: Júlia Antunes/Equipe SobreOTatame).
Na última sexta-feira (31), o Espaço Reocupa recebeu a segunda roda de conversa Mulheres Negras: protagonistas na cena cultural, evento que reuniu artistas e pesquisadoras de diversas áreas. Dentre as convidadas, esteve presente a cantora e compositora paulista Bia Ferreira que aproveitou sua passagem por São Luís para compor a roda. A iniciativa foi uma parceria da Casa D’Arte com a Secretaria do Estado da Mulher (Semu).
O espaço ficou cheio para ouvir as vivências das debatedoras Paula Guterrez, Doralice (cantora e compositora), Célia Sampaio, Gisele Padilha, Lúcia Gatto, Anastácia Lia e Antonieta Lago. Professora e pesquisadora da área de gênero, Antonieta, representando o Núcleo de Preparação e Ações Políticas para as Mulheres da Semu, abriu o evento ressaltando a importância daquela iniciativa.
Em seguida, a atriz Brena Maria apresentou parte de seu espetáculo Existe muita coisa que não te disseram na escola, baseado na obra de Bia Ferreira e em fatos e notícias relacionados à violência contra a população negra brasileira. Temas como racismo estrutural e genocídio dessas populações permearam a performance.
Leia também | Alê Santos e o Empoderamento de Narrativas Negras Periféricas nas Redes Sociais
Ana Mendonça, secretária da Secretaria do Estado da Mulher, ressaltou o esforço que vem sendo feito pela instituição em visibilizar vozes e experiências daquelas mais atingidas pela violência de gênero: a mulher negra. Citou ainda a dificuldade de inclusão de mulheres no âmbito político, as quais, mesmo já inseridas nesse meio, ainda enfrentam limitações e precisam a todo momento ratificar a conquista deste espaço.
Em sua fala, a professora e pesquisadora Lúcia Gatto destacou a necessidade da resistência para o movimento, tendo em vista que a política social que estamos inseridos gera e mantém preconceitos ao estabelecer certos lugares possíveis para determinados tipos sociais. “A gente não quer ocupar esses lugares, apenas. Nós queremos ocupar os lugares que pretendemos”, diz Lúcia, e completa sua fala enfatizando que a artista negra “canta, dança, representa e faz poesia a partir do corpo da mulher negra”.
“Temos muitas dificuldades pelas quais não fazemos mimimi (…)”, brinca. “(…) como insistem em colocar pra gente toda vez que a gente reage de uma maneira afirmativa, de uma maneira afro afirmativa. Mas a gente tem que pleitear sempre o direito de colocar as coisas, de colocar nosso corpo, na posição, no lugar, no espaço, buscando as referências que temos pra que ele faça valer aquilo que entendemos por arte. Sinto muito se isso não cabe dentro do processo ocidentalizado, mal arrumado, que insistiram que a gente engendrasse. A gente faz diferente. E esse fazer diferente insiste em trabalhar com um corpo que no dia-a-dia é muitas vezes mitigado, violentado, exposto de uma maneira torpe. E essa maneira torpe não é a maneira como nós nos estabelecemos (…). E por isso dá tanto problema, porque cada vez que um corpo desse aparece, ele mostra o tamanho do racismo que se apresenta!”, acrescentou Lúcia.
Em seguida, a pedagoga Paula Guterrez ressalta a importância da representatividade e sororidade entre mulheres negras. Anastácia Lia complementou a fala ao destacar que parte da força do seu trabalho como cantora vem das inspirações negras com as quais teve contato.
Questões relacionadas às oportunidades foram constantemente levantadas pelas convidadas. Ainda em sua fala, Anastácia afirma que ela é quem abre suas portas. “Nós somos desafiados e nós conseguimos fazer até o que desacreditam que nós façamos”. Gisele Padilha, terapeuta ocupacional e artista maranhense, lembra que as “portas fecham também(…). Porque tu é mulher, porque tu é preta(…)”. Para ela, a denúncia ao racismo incomoda e isso é motivo de perda de muitas oportunidades por artistas negros, “se incomoda no dia-a-dia, imagina na cultura. Que que essa menina quer cantando?!”, conclui.
Primeira mulher a cantar reggae no Teatro Arthur Azevedo (TAA) e a primeira a gravar um CD do ritmo, a dama do reggae Célia Sampaio falou da relevância feminina dentro do movimento: “A mulher sempre fez parte da cultura regueira no MA, sem a dança não existe reggae, e a mulher tá lá presente”. Contudo, a cantora faz uma ressalva ao evidenciar a presença ainda majoritária dos homens, principalmente no que diz respeito às produções musicais. Célia destaca ainda a necessidade de mais iniciativas como essa para que a arte negra se faça visível e presente, para que assim as discussões em relação às políticas de incentivo sejam fortalecidas.
Ao final da roda, a cantora, produtora, ativista e afro-empreendedora pernambucana Doralice somou às falas ao sublinhar a distinção da identificação e da união feminina no processo de luta contra o sistema. Juntas, Bia e Dora idealizam uma produtora cultural denominada Coletivo 22, através da qual promovem eventos pela diversidade e valorização de culturas ancestrais.
A artista trouxe ainda questões relacionadas a arte descolonizada. Para ela, uma produção dessa natureza é possível graças a uma cultura de resistência negra, capaz de salvaguardar um conhecimento ancestral. E por isso seria importante não só a união, como também a troca entre profissionais negras. Doralice denomina isso como tecnologia de sobrevivência.
Por fim, Bia Ferreira fechou a roda lembrando ao público do risco que a mulher negra assume ao trabalhar e se posicionar com questões de caráter político. “Assumir esse lugar é assumir um lugar de risco”, fala. A compositora ressalta ainda sua constante pesquisa dentro do movimento, pois segundo suas próprias palavras: “nosso discurso é constantemente questionado”. Para tanto, Bia faz uso do seu trabalho como “arma”, um meio de acesso às questões que julga necessárias e relevantes. Acredita que por meio da sua música é possível realizar mudanças.
“Para além do lacre, para além do tombamento(…). Acho que a gente precisa pensar em como a gente constrói esse intelecto pra que a gente não seja derrubado por qualquer argumento frouxo (…). Lutar também! E pensar em como a gente se articula pra educar os nossos a respeito disso (…). A gente precisa entender esse lugar, de como a gente vai se educar, como a gente vai fazer a informação ficar de fácil acesso, pra que os nossos se eduquem também e não reproduzam pensamentos e atitudes que foram impostas por uma sociedade escravocrata. Porque essa reprodução é que fortalece esse discurso”, pontuou Bia Ferreira.
Bia concluiu deixando questionamentos ao público: “qual a prática anti-racista que você vai ter hoje? Como você vai fazer valer o discurso que você faz? (…). É a gente se propor a fazer diferente, a sair diferente do que a gente entrou. O que você vai fazer hoje?”.