Contém algumas doses de spoilers
Numa dessas madrugadas insones da quarentena, acabei me rendendo a série Nada Ortodoxa (Unorthodox), lançada em 26 de março pela Netflix. A série surpreende, emociona, questiona dogmas e traz estranhezas. Sim, essas foram as primeiras impressões logo depois de assistir.
Baseada no best-seller autobiográfico de Deborah Feldman – Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (em tradução livre, Nada Ortodoxa: A escandalosa rejeição das minhas raízes hassídicas), Nada Ortodoxa têm apenas quatro episódios, que definitivamente você pode assistir sem pausa, porque, apesar de ter um início lento, a série já te convence a continuar no primeiro episódio.
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A direção ficou por conta de Maria Schrader, enquanto Ana Winger e Alexa Karolinski são as responsáveis pelo roteiro; nada mais justo e simbólico do que ter um time de mulheres contando a história de uma mulher rompendo laços com uma estrutura patriarcal.
Vamos ao que fez essa série acrescentar horas na minha insônia.
Esther Shapiro, interpretada impecavelmente pela atriz israelita Shira Hass, é integrante de uma comunidade hassídica de judeus Satmar que vive em Williamsburg, no Brooklyn (Nova York); a jovem começa a série fugindo, com destino a Berlim, deixando para trás um casamento arranjado, sua família e uma história da qual não era protagonista.
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De cara, o que mais me chamou atenção foi o fato de Esty não levar nada ao iniciar sua jornada. Ela viaja somente com a roupa do corpo, documentos e dinheiro, rompendo com sua comunidade, da qual ela nunca tinha saído, para enfrentar um mundo que ela não conhecia.
É preciso muita coragem para fazer essa ruptura e se permitir renascer, e Hass soube dar vida pra cada sentimento que Esty vivenciava, fosse ele medo, angústia e até mesmo certa inocência diante daquele novo mundo.
Outro ponto muito simbólico é o fato de o destino de Esther ser justamente um lugar que ecoa os traumas mais dolorosos da sua comunidade (judeus sobreviventes do holocausto); e ela percebe-se confrontada com uma Berlim cosmopolita, questionando memórias históricas do seu povo, dando-se conta de que, assim como ela, a Alemanha também precisou encontrar um caminho para elaborar e processar seu passado traumático – um impacto cultural positivo.
Deus esperava demais de mim, agora preciso traçar meu próprio caminho – Esther Shapiro
A narrativa se divide entre o tempo presente e os flashbacks que vão contando a história de Esty até o momento da fuga. Ela diz ser diferente, que sempre desejou pertencer, se encaixar, que viveu com esperança a experiência do casamento, mas que logo na noite de núpcias se percebeu frustrada, e não encontrou a satisfação que buscava.
Essa busca por satisfação de Esther me fez criar proximidade com a personagem; afinal de contas, não é essa a busca que nos rege? Os caminhos vão ficando mais confusos e as escolhas pesam, e, às vezes, o preço é deixar uma estrada longa e conhecida. Esty precisou fazer essa travessia, e eu fui cativada por essa história de amadurecimento e re-construção!
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Em Berlim, ela faz amigos (um acolhimento que nunca tinha conhecido na antiga comunidade), tem a chance de entrar no conservatório de música e viver sua paixão, pôde se reconectar com mãe, além de experienciar o sexo pelo prazer. Na nova Berlim foi onde Esther pode encontrar voz!
Uma das cenas mais bonitas é quando ela se desfaz da peruca kosher – na cultura hassídica, as mulheres são obrigadas a raspar a cabeça ao se casarem. A principal razão desse costume é proteger a mulher dos olhares de outros homens –; ela mergulha no lago e renasce, abraçando sua libertação. É uma cena muito poderosa.
Sentando à mesa com o Judaísmo
O roteiro é muito cuidadoso ao apresentar a cultura e a religião de uma parte ultra-ortodoxa do judaísmo; é fidedigno, não tece grandes críticas, e até certo ponto, é uma experiência bonita.
A cena do casamento entre Esther e Yanky (Amit Rahav) é riquíssima em simbolismo e beleza, com traços culturais muito bem marcados – me senti realmente imersa naquele momento.
Mas, por outro lado, é impossível não tecer críticas mais severas, e não me ver afetada e com raiva de uma estrutura religiosa tão dogmática e castradora. Não é sobre a existência de um Deus, ou sobre um propósito maior de repor a população judaica morta no holocausto (o que já renderia bastante discussão), mas é, sobretudo, sobre o silenciamento vivenciado pelas mulheres da comunidade, como elas são postas apenas para procriar, tratar os homens como um leão, já que eles querem ser reis.
A ordem que impera é a lei do pai, e na série o patriarcado toma forma na figura do Rabino: ele é quem dá a ordem de busca, quem perdoa, é quem orienta. Ele é a lei!
Então, nesse sentido, a série não se arrisca, e até cria a figura de Yanky com certa honestidade, que em vários momentos beira a inocência e parece estar tão perdido quanto a Esty dentro daquela estrutura, mas essa criação mais palatável do personagem me pareceu ser feita apenas para amenizar a rigidez cultural.
Na música temos que quebrar muitas regras para sobreviver
Quebradora de regras, acho que posso definir Esty assim, pelo menos no que diz a respeito ao desejo por ser livre e se encontrar. A forma como transitou entre uma mulher submissa às tradições para uma mulher corajosa e decidida, é bem marcante.
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E não é sem medo que ela rompe com sua comunidade, que mergulha em si mesma, que enfrenta seus traumas, mas, como já disse por aqui antes, desejo é potência e no último episódio ela têm essa consagração, quando sua voz ecoa no conservatório de música.
Nada Ortodoxa entrou fácil na lista das melhores séries que já vi em 2020, mas espero que não tenha continuidade, muitos arcos ficaram abertos, mas são previsíveis, e dar continuidade pode quebrar o encanto. Quem sou eu para opinar, não é mesmo?
Algumas curiosidades:
- Após os quatro episódios, a Netflix disponibilizou Nada Ortodoxa – Making of, para quem quer saber mais sobre a série. São só 20 minutinhos, mas eu adorei;
- Boa parte da série é falada na língua iídiche (do alemão jüdisch), uma língua originária Judaica e o boa parte do elenco precisou aprender;
- Cada comunidade têm o nome do local de origem do seu Rabino, no caso da série (e livro), a comunidade é Satmar;
- Satmar é uma comunidade formada por sobreviventes do Holocausto, eles acreditam que todo o genocídio causado por Hitler foi um castigo de Deus por eles terem se assimilado aos europeus.
Abaixo, deixo o trailer pra vocês: a série está disponível na Netflix.