Concita Braga, criadora do Boi de Nina Rodrigues (Foto: Divulgação).
Eu sou filho da região do Munim. A família da minha mãe e do meu pai vieram do município de Rosário. Sempre ouvi histórias de que os bois do sotaque de Orquestra nasceram nessa região, que o boi de Axixá se “escondia” lá na casa dos meus avós maternos antes de “morrer”.
Cresci aprendendo que todo o auto do bumba meu boi, aqui no Maranhão, gira em torno do desejo da Mãe Catirina, grávida, que intima seu companheiro Pai Francisco a matar o novilho mais estimado do patrão, pra que assim, pudesse comer a língua do boi.
O amo dá por falta de seu amado boi, convoca os vaqueiros para a caçada, deve tá perdido! Mas eles nada encontram! Atendendo à súplica do patrão, índias e índios guerreiros saem então à procura do novilho, além de encontrarem o novilho, também acham os culpados. Arrependidos do que fizeram, Catirina e Francisco recorrem aos espíritos da mata (cazumbás) para que façam alguma coisa pelo animal.
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Cético das crendices africanas-indígenas, o patrão roga à São João para que seu novilho viva, prometendo todo ano fazer uma grande festa em sua homenagem. O boi vive, ele vem encantado, cheio de pedras preciosas e arrastando a barra no chão, um manto de tecido nobre. Ninguém sabe ao certo se foi obra dos espíritos ou do Santo, mas todo ano a gente celebra o São João.
Falar sobre o sotaque de Orquestra, em particular, me parece ser muito íntimo e, confesso, que é emocionante também. Ainda mais neste período junino sem festa, sem brilho, sem pena, sem dança, sem som. Um silêncio que é de partir o coração para quem é amante das noites de São João!
A história que se conta é que, por volta das décadas de 1920 e 1930, uma orquestra de bordel de Rosário, após realizar apresentação, saiu tocando pelas ruas e encontrou um boi de Zabumba. A parceria teria então formado a nova – e mais diferente – forma de tocar bumba meu boi. Junção que dá espaço às tradicionais zabumbas e agrega instrumentos de sopro e corda, o boi de Orquestra é caracterizado também pela presença dos tambores-onça e taróis. Entre os personagens do sotaque estão os vaqueiros, índias e índios e o boizinho que rodopia e flutua entre as fileiras dos brincantes.
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As indumentárias são muito luxuosas, carregadas de miçangas, canutilhos, bordados de todos os tipos. As índias e os índios, certamente, são os que mais roubam a cena, com suas indumentárias feitas de penas e plumas. No cordão, também se fazem presentes os vaqueiros campeadores e de fita, a burrinha, Pai Francisco e Mãe Catirina, e claro, o boi, que é conduzido por um homem, chamado, miolo.
O batalhão do Boi de Nina Rodrigues, ou apenas, Nina, abriu as portas de sua fazenda e eu pude conversar com as índias, vaqueiros e com o amo do boi.
O grupo foi criado por Concita Braga em 28 de março de 1989, na cidade que carrega o seu nome. Portanto, este ano, o Nina, completa 31 anos de história. O grupo vem, ao longo destas três décadas, desenvolvendo junto ao povo maranhense o resgate cultural através da música, poesia e da arte, na perspectiva de não deixar morrer a história e a cultura popular. E por falar em história, a cidade de Nina Rodrigues é marcada pela Guerra da Bailada, um dos movimentos revolucionários mais marcantes do Brasil.
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O Nina é considerado como “modelo” para os demais grupos culturais em suas coreografias harmônicas e ritmadas, sendo pioneiros na introdução de novos instrumentos não utilizados até então em Bumba Boi sotaque de Orquestra, sem perder, no entanto, suas raízes preservando suas características regionais.
Sobre o amor pela tradição, Írismar, uma das índias guerreiras do boi, diz: “Estou inserida nos festejos juninos desde criança, minha mãe sempre gostou muito e sempre me incentivou a dançar, a festa é algo intrínseco a mim. São 20 anos de dedicação, passei por algumas brincadeiras e no boi de Nina Rodrigues encontrei a minha essência”.
Lembram que eu comecei o texto resgatando minhas memórias infantis? Então, o Nina tem esse compromisso também, de passar adiante, aos pequenos, os segredos e a magia do folclore e da cultura popular. Eu sempre vejo as crianças muito empolgadas e até envaidecidas por estarem “a caráter”, com as indumentárias, seja de índia ou de vaqueiro.
Ainda sobre esse aspecto da tradição, a índia destaque do Nina, Rennya Tajra me contou: “Eu tenho um amor por TUDO que o envolve! E tenho muito orgulho da cultura secular que nosso estado apresenta todos os anos majestosamente, nem preciso dizer que pra mim o São João é energia, alegria e celebração do nosso povo e dos nossos ancestrais”.
Entretanto, como falei no início do texto, este ano está marcado por uma grave pandemia, o que acabou afetando todo os trabalhos de produção não somente do Nina, mas de todos os grupos folclóricos do Brasil.
O silêncio do grupo em lives no Instagram é uma decisão conjunta, entendendo que o momento é de concentração, reflexão, retiro e oração. Somente registros fotográficos ou vídeos postados no feed promovem a interatividade, e aliviam ou aumentam mais ainda a saudade dos brincantes e amantes do boi:
“Nosso grupo tá vivendo um dia de cada vez. Queremos MUITO dar a festa que o público maranhense e as pessoas que amam o NINA merece em prol dos seus 30 anos. Se pra isso for necessário que apenas no outro ano façamos, que assim seja!”
Rennya Tajra.
O Joelson, amo do boi, comentou comigo sua tristeza: “O período junino é marcado pela alegria. E quando esta fonte seca ficamos apenas com o espetáculo da tristeza. Ainda bem que temos a capacidade de sonhar, de lembrar. Assim, nos mantemos vivos e esperançosos”.
A esperança também move o coração do Cabuzão, vaqueiro campeador: “Apesar de tudo, um período que nos faz refletir sobre muitas coisas, principalmente saber mesmo o que nos fragiliza, se algo de ruim que acontece em nós ou nas pessoas da nossa estima”.
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É esse o sentimento do batalhão neste momento: esperança e fé! O Nina é um boi que se organiza com exatamente um ano de antecedência, termina um São João e Concita, já emenda a criação de todo o contexto que vem no outro ano!
“Estávamos preparando uma grande celebração. Antigos e novos brincantes estavam empolgados porque iriam dançar juntos. Pessoas que já haviam deixado o boi há mais de 10, 15 anos, iriam voltar a vestir a indumentária do NINA para este grande espetáculo de três décadas. Quem já havia se organizado para junho deste ano pode ter problemas para outro mês ou até o ano que vem. É frustrante!”
Joelson, amo do boi.
Nesse sentido, não podemos esquecer que tem toda uma cadeia produtiva por trás dos grupos de bumba meu boi, que vai das lojas que vendem penas, miçangas, canutilhos, passando por bordadeiras, costureiras, empresas de transportes, setor de alimentação e músicos. Tudo isso tem uma movimentação financeira muito grande. Representa dinheiro circulando na economia local.
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E por mais que as estratégias do governo estadual sejam pensadas para “suprir” a necessidade dos grupos, neste momento, as dificuldades são ainda incalculáveis.
Mas, para o ano, com as bênçãos dos Santos Juninos, veremos a alegria dos brincantes do Nina cantando o Nordeste Brasileiro, um nordeste de guerreiros, de frevo, forró baião, de índios, caboclos, artesão, de reggae, matraca, zambumba, de maracatu, capoeira, de um povo livre e rebelde, de crenças raças e peles. Que bate no peito e grita: sou Nina de Coração! Nordeste é o meu Maranhão!