Essa é a vista da sala do meu apartamento, na Rua Real Grandeza, em Botafogo.
A Real Grandeza começa na Rua São Clemente e corta a Voluntários da Pátria; seguindo até o túnel que divide Botafogo de Copacabana. Ao fundo, é possível observar o Morro Dona Marta, uma das favelas mais verticais do Rio, que sobe e desce a pedra até o bairro do outro lado, Laranjeiras.
No outro extremo, lado oposto ao horizonte presente nesta foto, a Real Grandeza encontra o cemitério São João Batista, encimado pela pedra que abriga a favela dos Tabajaras. Dona Marta e Tajabaras são favelas menores em extensão territorial, encravadas no meio da Zona Sul e portanto mais integradas à dinâmica das proximidades.
De um lado, a minha casa se separa do Dona Marta por, aproximadamente, 500 metros. Entre a sala e o morro, são cinco quadras.
No sopé vizinho ao acesso principal do Dona Marta, a encosta mais próxima à Real Grandeza, fica a sede da Prefeitura do Rio, onde trabalhei até o ano passado. O Palácio luxuoso, que até a década de 70 abrigou uma embaixada, pode ser acessado por trás pela mata cerrada que recobre a pedra.
Já a distância até o Tabajaras é menor, mas a favela se debruça para Copacabana, havendo apenas uma ocupação mais esparsa para o lado de Botafogo.
Ultimamente não é raro estar na sala do meu apartamento e poder ouvir claramente os tiros que vem do Dona Marta. Considerando a distância de quase meio quilômetro até o morro, é fácil perceber que o barulho contínuo é produzido por armamento pesado.
Nessas horas, costumo pensar na relatividade da distância, ver as luzes acesas no morro, tão perto e tão longe. Nas quartas-feiras, depois do jogo de futebol da TV, já não sei se os fogos são de comemoração ou uma aparição surpresa de algum inimigo subindo o morro. Mas enquanto os moradores do Dona Marta lidam com problemas concretos, que inclusive podem atravessar a porta da frente de suas casas em formato de projétil, durmo confortavelmente todas as noites. Da minha janela vejo ao longe o Dona Marta enquanto reflito sobre a tragédia urbana carioca. Da janela virtual, no Facebook encontro as pessoas escandalizadas com artistas nus em museus e quadros que retratam cenas de sexo, tal já existia nos afrescos de Pompeia, cidade da Roma Antiga aniquilada pelo vulcão Vesúvio.
Cada um com sua guerra, mas há quem possa escolher com o que se escandalizar. Na cruzada moral contra a nudez, muitos encontram sua trincheira. Há quem simplesmente não possa fazer essa escolha. Verdadeira perversão dos nossos dias, a violência contra o pobre, o preto, o favelado, só é percebida quando o som dos tiros atrapalha a sessão de cinema no netflix. O exército sobe o morro, milhares de crianças deixam de ir à escola, há corpos negros sangrando em cada uma dessas zonas de exclusão. O Rio continua, a rotina segue. Escândalo mesmo é a performance do artista com o pinto de fora. Crianças, ora, crianças não podem ver um pau! Mas aparentemente, quanto aos corpos jogados nas vielas, tudo bem.
Como eu já disse, trabalhei no Palácio da Prefeitura, ao lado do Dona Marta, por quase dois anos. Passei todos os dias a pé pela rua principal de acesso ao Morro, ao chegar e sair do trabalho. Nunca deixei de me chocar com a viatura estacionada sempre no mesmo local. Lembro sempre das palavras marcantes de Hélio Luz no excelente documentário Notícias de Uma guerra Particular: “Em Israel tem muro, na África tem cerca. No Rio não”.
Não interessa se de fato o favelado fica ali no bolsão de exclusão porque é o que lhe resta. O que interessa é o que parece – e parece que é o carcereiro da viatura que controla a circulação, para garantir que do lado de fora do morro as pessoas possam se preocupar mais com paus e bucetas do que com corpos inteiros estendidos inertes. O que me separa do Dona Marta não são os 500 metros, as cinco quadras. É o Palácio da Prefeitura, são os bares hipsters, os restaurantes de cozinha vegana ou asiática, as drugstores, os sobrados com piso de sinteco e ar imponente.
O que me separa do Dona Marta é a noite de sono, é a geladeira cheia de comida, é a guerra que acontece da viatura pra lá, são as conversas infindáveis que sinto ter que presenciar virtualmente, nas quais pessoas que nunca foram a um museu discutem o que é arte.
Arte, de fato, não sei.
Mas pornografia sei bem.
Tá lá mais um corpo estendido no chão.