“Não chora amor, não chora!
A madre Deus já confirmou
que meu boizinho se perdeu
na luz do Sol!”
(música “Amanheceu/Chegança” – José Pereira Godão)
Ah! São João, ele que nos fornece o combustível necessário para se brincar um mês inteiro. São Pedro refresca com sua chuva. Santo Antônio se responsabiliza pelos amores e encantos. São Marçal finaliza sempre com chave de ouro!
Mas esse ano não será assim. O sentimento de tristeza bate forte no peito. Não teremos fogueiras. As noites não terão encanto, nem amores. As lágrimas serão, para muitos, a chuva que irá refrescar a alma. Não teremos início, meio e fim da melhor festa do ano, particularmente falando, que é a festa junina!
Numa tentativa de aquecer o nosso coração, eu conversei com a moçada do Boizinho Barrica, uma das expressões culturais e teatrais mais representativas da cultura popular brasileira e que, neste ano, completa 35 anos de Vivas Juninos!
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Este pequeno “boi”, que cabe na palma da mão, é feito de uma barrica de catuaba e, embriagado de amor, saiu do coração do bairro da Madre Deus e ganhou os palcos de vários países como Canadá, França, Turquia, China, Argentina, México, Suíça, entre tantos, mundo afora.
A marca de parafolclórico costuma ser a identificação atribuída ao Boizinho Barrica entre os diversos grupos de bumba meu boi no Maranhão. Mas seria o Boizinho Barrica um bumba meu boi, ou seja, uma personagem do nosso folclore? Portanto, o que seria esse conceito?
Antropologicamente, qualquer que seja o tipo de mundo social onde exista, o folclore é sempre uma fala. É uma linguagem que o uso torna coletiva. O folclore são símbolos. Através dele, as pessoas dizem e querem dizer. Falar em um conceito parafolclórico, é confuso e até marginalizante, quando se sabe, aqui, que qualquer grupo folclórico conta uma estória de várias formas diferentes.
Sobre isso, Zé Pereira Godão, diretor e um dos fundadores do grupo, diz: “Nem folclore, nem parafolclore, que é conversa pra boi dormir. Somos cultura popular. A cultura maranhense é interativa, inventiva, evolutiva. Restabelece-se nas tradições e afina-se à modernidade. Funde-se permanentemente, gerando novas crias e ‘bichos’. Como acontece com a vaca Madrinha de Deus, com sua barrica grávida de festejos que não para de parir a cada estação novos artificies e brinquedos, entortando os miolões de quem quer aprisiona-la, padroniza-la e contê-la”, disse.
O que podemos refletir é que, talvez o parafolclórico não tenha o compromisso de interpretar uma determinada manifestação cultural de forma mais pura ou tradicional. Então, o ser “parafolclórico” desarma o Boizinho Barrica dessa obrigatoriedade.
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Sobre isso, uma das bailarinas do grupo, Euricélia Coqueiro, que já tem 18 temporadas juninas, nos conta: “Liberdade não significa que sejamos irresponsáveis, mas estamos falando de outra forma sobre o tradicional. Não estamos diminuindo o tradicional”, afirmou.
Portanto, me parece pertinente, que antes de qualquer julgamento, precisamos conhecer um pouco do Boizinho Barrica, que vem a ser uma companhia de dança e teatro de rua, e carrega uma identidade na representação dos folguedos juninos do Maranhão.
Vem vê, moçada! Vem vê! O meu Boi Barrica a sua Estrela procurar!
O Enredo
“Garota, me diga,
és a bailarina que me encantou no céu?
Meu boi barrica anda louco pra viver essa ilusão.
Amor de bumba-meu-boi
é madrugada e canção”.
(música Garota – Luís Bulcão)
O Boizinho Barrica tem sua atividade voltada para valorização e afirmação da cultura maranhense com um enredo muito próprio e peculiar, que narra uma paixão, um encantamento, expressão na simbologia de uma estrela cadente que projeta sua mágica luz de desejos sobre um boizinho das campinas Madre Deus, buscando com ele vivenciar a razão desse amor pelas nossas festas e brincadeiras juninas; querendo entendê-las na efemeridade de uma única noite de terreiros.
Sobre isso, Zé Pereira nos conta, em um texto escrito nos anos 2000, e que nos parece bem atual: “Não somos uma criação anônima, temos identidade. Não somos sem registro no tempo, temos titularidade. Não fomos passados hereditariamente de pai para filho, somos o nosso próprio patriarca. Não aprendemos somente pelos ensinamentos dos nossos tataravôs, mas cultivamos também o conhecimento dos livros, dos canais de TV, e das ondas de rádio”.
A Indumentária
“Eh do coco! Eh do coco!
Moça do coco, vem ver,
a palha bonita que trouxe
pra gente bordar e tecer”.
(música Coco de Barreirinhas – Zé Pereira Godão e Luís Bulcão)
Há quem diga que nunca se muda! Mas o Boizinho é dono de uma indumentária única e original feita a partir da fibra de Buriti – fruta típica da região de Barreirinhas, uma das cidades onde podemos visitar os famosos Lençóis Maranhenses. Quem vê a fibra já associa ao Barrica. É leve, é imponente, é representativo, é movimento!
O Boizinho então, arrumado para encontrar sua Estrela bailarina, vai vadiar em várias representações dos ritmos e danças da cultura popular maranhense: o bumba meu boi em seus vários sotaques (orquestra ou Munim, zabumba ou Guimarães, pandeirão ou Baixada, matraca ou Ilha, sotaque de mão ou Cururupu); quadrilha; dança do coco; dança do lelê, dança do caroço; tambor de crioula; dança portuguesa; festa do divino; valsa de reis.
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E assim, nasce a indumentária do Boizinho Barrica: um grupo de amigos que pensou trazer elementos de diferentes sotaques e danças para compor sua identidade.
Nesse sentido, embora o tambor de crioula, por exemplo, apresentado pelo grupo tenha instrumentos de corda e uma indumentária mais elaborada. A dança identifica ao público que, ainda assim, é um tambor de crioula.
O Bailado
“Roda minha menina,
vem me tirar do mourão.
Dança bailarina,
dentro do meu coração.
O meu Boi Barrica
na varinha de condão”.
(música Caixinha de Segredos – Zé Pereira Godão)
A dança do Boizinho Barrica é representativa. Ela traz elementos dos grupos tradicionais de bumba meu boi e demais danças populares. Conversando com os bailarinos e bailarinas do grupo, é comum eles e elas afirmarem que “bebem da fonte”.
Embora a indumentária seja a que caracteriza o grupo aos olhos do público, a dança também tem características muito particulares. A mistura da ponta do pé com o forte pisado do caboclo de pena, a firmeza da zabumba com giros de ballet, a orquestra saltitada, o divino teatralizado, a valsa imponente e a brincadeira da quadrilha solta, sem coreografia.
Neste sentido, o que fica, como plástica visual, é mesmo a alegria de dançar, o prazer, a energia do corpo em movimento ao embalo da música, no pulsar dos ritmos, na cadência dos gestos, na ginga da gente plasmando o som, dando-lhe forma com o próprio corpo.
Assim, os desenhos coreográficos também transparecem estilizações e criações, diretamente sobre passos característicos de certas danças ou sobre certos personagens em algumas partes dessas danças, evidenciando-lhes os movimentos de seu repertório mais expressivo, mesmo sem qualquer sincronia com os demais parceiros do cordão, outras vezes no improviso da liberdade de cada “dançarino-nativo” que também cria a sua danã no gozo da música.
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Todo ano, a trupiada Barrica abre as portas de sua arena para as oficinas que tem um caráter mais de convivência, as pessoas ali envolvidas durante o processo de seleção para o elenco, também se colocam numa teia de construção de amizades e laços afetivos, vivenciam por quase dois meses as brincadeiras.
Segundo Zé Pereira, “é o maior dos espetáculos, porque agrega centenas de pessoas e rola uma energia que é incomparável, inconfundível, aonde atinge um nível de explosão”. Há um encontro que, de acordo com diretor da companhia, entre a tradição e a modernidade.
Mesmo nessa situação de pandemia onde o desespero e a angústia se fazem presente, o grupo tem mantido um cronograma de atividades virtuais, que acaba tendo um retorno positivo. De acordo com a Euricélia, “quer seja trazendo os resgates históricos do grupo por meio de vídeos no IGTV, quer seja dançando nas lives”.
Tudo isso para que as pessoas que gostam do período junino se sintam acolhidas e que não se sintam à deriva ou entristecidas nesse momento de ausência festiva. Mas é prometido começar do zero no próximo ano, com as bênçãos dos Santos Juninos!
O Amor Barrica
“Eu fiz uma gaiola de ouro,
pra prender teu coração,
tu podes prender o passarinho,
mas o canto dele não”.
(música Gaiola de Ouro – Luís Bulcão)
Se podemos representar o Amor Barrica em uma canção, então encontramos ele nessa composição do poeta Luís Bulcão. Um amor, que por maiores que sejam as tentativas de aprisioná-lo, padronizá-lo e contê-lo, é um amor livre para ir, para voltar, só para olhar, para dançar, pra encantar. Esse é o amor Barrica, é o amor que fica!
Euricélia Coqueiro diz: “No meu caso, esse amor se consolida porque eu fui encontrando respostas para tudo que eu queria descobrir. Ali (no grupo) tem uma energia tão boa! É o conjunto da musicalidade, o ritmo tão bem executado pelos nossos percussionistas, músicos, cantores, que mexem com a gente!”.
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É tempo, portanto, de refletir sobre o amor que ofertamos, de cultivar o amor que queremos. Não é tempo de festejar, é tempo de curar! É tempo de fazer poesia e canção. É tempo de nutrição da alma, tempo de calma no coração. E o Boizinho, então, fica em Júpiter, solitário, entristecido, na escuridão. Mas ao mesmo tempo, envaidecido, pois não foi esquecido pela sua trupe de vadiagem! Ê Barricada vencedora! Da Madre Deus acolhedora!
Próximo ano, o Boizinho chega de viagem. E brincando nos terreiros do mundo levará seu canto de luz, procurando sua Estrela, a bailarina Tainá, mostrando a todo povo junino, a embriaguez que é o sentido de amar!
“Levanta boi e vai,
que é pro amo ver
que boi também chora,
também sente dor
Que boi também chora!”.
(música Boi de lágrimas – Makarra)
Mais do São João do Maranhão
Durante o mês inteiro de junho, traremos um material especial sobre o São João do Maranhão. O objetivo do SobreOTatame é trazer à memória os dias alegres que já vivemos e ainda viveremos, dar voz aos principais atores e atrizes dessa época e alimentar o nosso amor por essa festa.
Segue, abaixo, os materiais produzidos este ano:
- Matracas que seguem firmes: o batalhão do Boi da Maioba;
- Um Forró para quem ama o São João, o novo single de Jonas Magno;
- Lá vai Boi de Pindaré: 60 anos de resistência;
- Matracas que se reinventam: o Boi de Maracanã em 2020;
- São João em tempos de isolamento social: Caio Zito cria versões alternativas de bumba-meu-boi;
- Nina é, Nina foi, Nina sempre será: o batalhão do Boi de Nina Rodrigues.
Abaixo, alguns dos materiais produzidos: