Talvez a vergonha seja o primeiro sentimento humano.
De um lado, na Bíblia se conta que Adão e Eva se esconderam da presença de Deus assim que cometeram o pecado original e provaram do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque estavam nus. De outro lado, Darwin, em sua obra “A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais”, afirma que “o rubor é a mais humana e peculiar das expressões”. Vergonha para todos os gostos.
Para Darwin, a vergonha é fruto da preocupação com a opinião dos outros. A princípio preocupação sobre a nossa própria aparência física, mas também a partir de causas morais relacionadas à culpa. “Não é a sensação de culpa que cora o rosto, mas sim a ideia de que outros pensam ou sabem que somos culpados”. Para ele, os vaidosos raramente são afetados, pois “têm demasiada autoestima para se sentirem depreciados”.
No conto “A roupa nova do Imperador”, Hans Christian Andersen narra a história de um governante vaidoso que contrata dois tecelões que lhe prometem fazer as roupas de seda mais finas que se possa imaginar e que só podem ser vistas por pessoas inteligentes e que estivessem preparadas para ocupar os cargos que possuíam.
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Os dois charlatães contratados fingiam tecer noite e dia e solicitavam cada vez mais dinheiro para as despesas da roupa e a cada visita de um ministro ou membro da corte, apontavam para o tear e perguntavam “o que vocês acham das cores? E do corte da roupa?”. Os cortesãos, vaidosos e medrosos demais para admitir que nada viam, elogiavam e mostravam ao imperador grande satisfação com o produto.
Ao fim, quando o próprio imperador foi verificar a confecção, cercado da sua corte, pensou: “Não vejo nada, nada! Mas é horrível! Sou estúpido? Ou… serei indigno do meu império?” e se viu obrigado a mentir também, dando inclusive cargos oficiais aos dois estelionatários.
O fim da história é conhecido de todos: o Imperador resolve desfilar pela cidade com suas “roupas” novas e é bajulado e elogiado por todos que se pretendem inteligentes ocupantes de cargos públicos, até que uma criança lhe aponta o dedo e diz: “o imperador está nu, o imperador está nu!”. Mas já é tarde demais para ele reconhecer seus próprios erros e ele segue empertigado o seu cortejo.
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Assim como a criança pode nos recordar de Rachel Clemens, a criança que se recusou a apertar a mão do general ditador João Baptista Figueiredo em 1979, a história pode nos recordar de vários governantes, em diversas esferas de poder, que se acham inteligentes ou vaidosos demais para reconhecer seus erros e que têm nos conduzido cotidianamente ao abismo e à barbárie.
De outro lado, na Inglaterra do século XI, Lady Godiva tentou negociar com o próprio marido, Leofric (Conde de Mércia), a redução dos absurdos impostos que este cobrava da população da cidade de Coventry. O seu marido lhe impôs uma condição: os impostos seriam reduzidos se ela se submetesse à vergonha de cavalgar nua pelas ruas da cidade.
Ela aceitou e pediu à população que se trancasse em suas casas para que ninguém a testemunhasse e, assim, tirou suas roupas, cobriu seu corpo com seu enorme cabelo e se pôs a atravessar a cidade a cavalo, escoltada por dois cavaleiros. Diz-se que somente um homem, de nome Tom, se escondeu para olhar a passagem de Lady Godiva e desde então a expressão “Peeping Tom” (Tom espiador) virou sinônimo de homens que não respeitam a privacidade das mulheres nuas. Em resposta, Tom foi severamente punido e o conde cumpriu com sua palavra para sua esposa e baixou os impostos. A submissão à vergonha como ato político.
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A vergonha, assim como a culpa kafkiana, só funciona quando nós mesmos nos sentimos julgados. Só sente a decepção nos olhos alheios aquele que sente a decepção diante de si mesmo.
Uma das características interessantes da vergonha é que ela pode ser tanto retrospectiva quanto prospectiva. Em seu aspecto retrospectivo, ela se volta para eventos do passado, feitos por nós ou nossos antepassados. Em seu aspecto prospectivo, ela nos leva a pensar: vou me envergonhar se fizer isso. Ela serve como uma espécie de bússola moral, que ao contrário da culpa cristã, vista pelo aspecto interno do pecado, aponta para o aspecto externo das nossas ações (como isso será visto pelos outros).
Em entrevista à DW Brasil, um professor de história alemão afirmou que “os alemães que realmente entenderam o que aconteceu na história ainda têm vergonha”, referindo-se aos horrores perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial. O sentimento de vergonha ultrapassa gerações a tal ponto dele se perguntar: “Nós temos o direito de ter orgulho de sermos alemães?”.
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Os brasileiros de hoje certamente não têm culpa dos eventos passados: da escravidão, do genocídio dos povos indígenas, da ditadura, da violência de gênero, e de tantos outros. Mas somos fruto desse passado e certamente podemos e devemos sentir vergonha.
De outra banda, os eventos recentes de caos pandêmico sob um governo federal genocida e governos estaduais e municipais omissos ou vacilantes nos dão certamente motivo para vergonha e necessidade de ação imediata. Se envergonhar dos nossos privilégios e da nossa história é ato político de primeira ordem para “escovarmos a história a contrapelo”.