O ator Joaquin Phoenix interpreta o Coringa em filme de Todd Philips. Foto: Reprodução/YouTube.
Por Luciano Leite, em colaboração ao SobreOTatame.
Se o Coringa (2019, Todd Philips) precisa ser categorizado como filme de gênero, é necessário alertar que não se trata de um “filme de super-herói”, afinal, as palavras Batman e morcego nunca são pronunciadas; e tampouco de um “filme de vilão”, que ganha espaço no cinema nos últimos anos, vide o Esquadrão Suicida (2016) e Venom (2018): ambos grandes fracassos, tanto em proposta e quanto em qualidade cinematográfica.
A película, já em cartaz nos cinemas mundiais, é antes um psicodrama singular, único, com reverberações previsíveis (a margem para reflexão política e social sobre a sociedade apodrecida que dissolve a saúde mental de quase todos) e imprevisíveis (a possibilidade de violência no mundo real, fruto de ameaças surgidas no seio da subcultura incel, que fez a polícia americana acompanhar o fim de semana de estreia do filme com atenção redobrada).
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Mas é realmente necessária tal definição complexa para um mera peça de entretenimento com um palhaço no papel principal? Vamos aos fatos: você não sai do cinema após os 121 minutos de filme sem sentir alguma coisa formigando na base de seu cérebro. Ou do seu estômago.
Pra começar, o corpo deste Coringa de 2019 é um exemplo da subnutrição não apenas física, mas também psíquica de um homem que não é visto, em momento nenhum do filme, pondo nada na boca a não ser comprimidos e cigarros acessos.
O personagem é corporificado pelo magérrimo Joaquin Phoenix (23 quilos a menos para o papel), que se firma novamente como gigante de Hollywood neste século, numa performance que sabe incomodar, perturbar, assustar e causar pena, tudo ao mesmo tempo. Um talento raro.
Não há ato de seu Coringa que não possa transitar entre o perturbador, o violento e o cômico, com pitadas de humor negro, em questão de milésimos de segundo, causando nos espectadores a sensação de imprevisibilidade típica do espetáculo de um palhaço.
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A Gotham City sombria do filme é ao mesmo tempo: a Nova York decadente, suja, violenta e corrupta do ano de 1981 (as sirenes policiais são onipresentes), retratada em segundo plano por um trabalho de direção de arte e figurino extremamente precisos, com referência inclusive à sua enorme população de ratos; e a grande cidade contemporânea do século XXI em convulsão causada por todo tipo de conflito e tensões oriunda dos tecidos sociais cada vez mais desiguais, pauperizados e fragilizados.
Poderia ser também São Luis do Maranhão atual, em sua podridão e brutalidade que conhecemos bem, mas esse é assunto para depois.
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Dentre outras, a referência cinematográfica mais clara e profunda para o Coringa do diretor Todd Philips é o Taxi Driver (1976, Martin Scorcese). Em ambos os filmes, temos relato análogo do homem branco e solitário que vive na cidade grande e chega à beira do colapso total, ultrapassando os limites que a sociedade impõe a ele e sucumbindo à insanidade e à loucura (não sem antes desenvolver problemas no relacionamento com outras pessoas, especialmente aquelas do sexo oposto).
Dessa maneira, as sociedades que envolvem Arthur Fleck e de Travis Bickle exigem muito e não dão nada em troca, a não ser humilhação, vergonha e incompreensão.
Hideo Kojima, por sinal, já anunciou o novo Coringa como o “Taxi Driver deste século”, dadas as similaridades e coincidências entre os filmes. Eles compartilham ainda um ponto em comum: participações marcantes do grande e interminável Robert de Niro. Sempre uma honra.
Há falhas pontuais no filme, que se encontram no desenvolvimento de enredo, principalmente sobre o desdobrar da coletividade de Gotham City no pano de fundo da história e as relações do Coringa com a família Wayne, mas nada que diminua o poder e impacto geral do filme.
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O ícone Coringa não é um simples palhaço¹, nem um pierrot carnavalesco, nem um criminoso em busca de dinheiro. É um personagem muito mais complexo.
Em todas as suas facetas ao longo da história do cinema e dos quadrinhos (do Coringa lunático dos desenhos animados ao Coringa terrorista-niilista de Heath Ledger²), além de se constituir como um vilão perfeito, ele pode ser entendido como um ser inconformado com a civilização, em muitos sentidos. Inconformado e com um perturbador sorriso no rosto, que quer nos convidar à loucura a todo instante.
Nota do filme: 4,5/5
¹ Sempre bom lembrar a cena de Watchmen (2009, Zack Snyder):
“Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto.O médico diz: “O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.” O homem se desfaz em lágrimas. E diz: ‘Mas, doutor… Eu sou o Pagliacci‘”.
²Recomendo o vídeo Why the Joker is the perfect villain, que serve de referência para a resenha, especialmente no ultimo parágrafo. Assista abaixo:
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Luciano Leite é quase administrador profissional e cinéfilo que busca entender o cinema por vias paralelas e inesperadas. Pensa que é parecido com o Jason Statham. Para conhecer mais do trabalho dele, pela @ do Instagram: @lucleite061.