Arma, consumo, dinheiro, pobreza, riqueza, crime, fome, multidão. Pense em tudo isso visto pelos olhos de uma criança. Todas as vezes que tento imaginar o que elas acham de toda essa loucura, meu peito fica apertado e a minha garganta dá um nó. Criança é uma gota limpa de vida. Transparente. Dói saber que existem lugares onde crianças não têm o direito de ser criança. Sinto aflição sempre que penso nisso. E, ao assistir O Menino e o Mundo, mais uma vez mergulhei neste turbilhão de emoções.
Quando escutei a trilha sonora, escrita e interpretada pelo rapper Emicida, soube de cara que esse filme mexeria comigo. Foi muito louco primeiro escutar a trilha e depois ver as imagens. Senti que, de alguma forma, eu já sofria pela vida daquele menino, mesmo antes de ver o filme. Quando olhei o cartaz – com aquela carinha redonda, dois tracinhos representando os olhos, bochecha rosada e duas canelinhas secas, vestido em uma camisa listrada branca e vermelha –, pensei: “Cara, preciso sacar essa história!” Mesmo sabendo que, de alguma forma, aquilo me deixaria triste. A minha necessidade de doses diárias de vida real me conduziu a essa vontade.
O filme
Sem técnicas avançadas, a animação foi feita de forma singela, como desenho de criança. Sem a neura da perfeição, cores alegres e traços sem compromisso. Os desenhos são lúdicos e leves, tipo imaginação infantil mesmo. Personagens são esquisitos e florestas e cidades são surreais. Não tem diálogo. E não precisou. Expressões corporais e faciais dos bonecos e a carga dramática do enredo, acompanhados pelo contorno sonoro – resultado do trabalho do percussionista Naná Vasconcelos (falecido esta semana, vítima de câncer no pulmão), do GEM (Grupo Experimental de Música), e do grupo Barbatuques (que utiliza sons extraídos do corpo humano) –, foram ingredientes para estimular minha reflexão sobre o tema e me entreter bastante, é lógico. O menino microscópico diante de um mundão louco mexeu comigo.
Criança nunca deveria se afastar dos pais. Nunca. São eles que nos passam valor moral e, quando educam com afeto, ajudam na construção do bom caráter. No filme, o pai do menino precisa deixar a família para trabalhar de peão em uma fábrica distante. Triste, o garoto sai em uma busca comovente para reencontrá-lo. O guri segue o tempo todo a música de uma flauta, canção que ele sempre escutava ao lado do magrelo, desengonçado e triste pai – em um quintal de um casebre, que fica no meio do nada. Vida sofrida, mas um paraíso para o veloz molequinho, que fazia do mato seu reduto encantado. A criança abandona o lar e passa a perambular pelo mundo que eu e você vivemos. Toda aquela fantasia, distante da crueldade da vida na cidade, acabou. E eu pensando: “A vida é louca mesmo!” Injustiça, guerra, enchente, abandono, favela, lixão e medo se tornam o preço que ele paga para tentar rever seu herói.
O roteiro ainda permeia por temas mais invisíveis na sociedade: desvalorização da arte, preconceito, exploração no trabalho, diferenças sociais, sistemas políticos opressores e maus-tratos a animais fazem parte do que é visto e vivido pelo garotinho.
Filmes que me levam pra onde O Menino e o Mundo me levou, usando fantasia pra me jogar na realidade, marcam minha vida.
O Oscar
Ao iniciar este texto, pensei em não falar do Oscar. Mas, para concluir, acredito que seria legal, sim, dar a minha opinião sobre a “Melhor Animação”. Aquela festa glamorosa, regada pela empáfia estadunidense, não tinha nada a ver com O Menino e o Mundo. Com todos os problemas que eles têm lá, essa selva predatória na qual sobrevivemos no Brasil é fora da realidade de muita gente que votou na escolha do vencedor. Isso não é um julgamento moral, mas acredito que, independentemente das questões técnicas, a história, principalmente em animação, precisa, de alguma forma, despertar algo a mais nos integrantes da academia – sei que o menino despertou esse algo a mais em muita gente, mas não o suficiente para ultrapassar essas barreiras culturais.
Divertida Mente, criação da Disney / Pixar, vencedor da estatueta, é bom. De forma delicada e sutil, conta a história de uma garotinha que convive com as emoções de ter que mudar de cidade, trocar de escola e fazer novos amigos. Lindo. Coisas que, de fato, são normais para a cabeça de uma criança. Mas, infelizmente, não é sempre assim. Por conta de tudo isso, pra mim, O Menino e o Mundo foi mesmo um soco no estômago. Bateu forte. Tocou bastante. Ainda bem! Acredito que, por ter despertado essa reação em um grande público, ele chegou a maior festa do cinema. E a grande conquista, não foi chegar a Los Angeles, mas abrir a cabeça de muitas pessoas para esse tema delicado – esse, sim, foi o grande prêmio para o menino.
Ainda no tapete vermelho, Alê Abreu, diretor da produção brasileira, disse: “Somos vencedores, independente do resultado. A indicação ao Oscar foi celebrada em todos os lugares onde houve um coração batendo pelo menino”. Foi isso mesmo que aconteceu, Alê!
E o meu coração foi um dos que bateu pelo menino.
Cuidem das crianças.