O real é o virtual? Reflexões sobre a reprodução da desigualdade virtual-real em tempos de pandemia

Texto de Leandro Augusto dos Remédios Costa [1], em colaboração ao SobreOTatame.com (Foto: Reprodução/Internet).

Hegel entendia que “o real é racional”, ou seja, a realidade é produto da razão, da racionalidade, mais especificamente do confronto entre idéias contrárias que produziriam uma síntese, sempre mais racional do que as idéias que se confrontavam.

Bourdieu tratou de sociologizar a frase de Hegel e convertê-la em “o real é relacional[2]“, ou seja, efetivamente não existe o real em si, com um sentido “último”, “essencial” ou “verdadeiro”, o que existe são vários sentidos dados a “realidade” social que são produzidos de acordo com as posições e disposições dos diferentes agentes individuais e coletivos e que estão em disputa sobre a definição do sentido legítimo do real.

Todavia, esse contexto de pandemia me fez repensar essa frase. Será que poderíamos dizer que “o real é o virtual“? Penso que em alguns aspectos o contexto pandêmico tornou o virtual “mais real” que o real. Nesse sentido gostaria de reformular a frase para: “o virtual é real e relacional”, o que implica que ele não tem mais ou menos realidade do que outras dimensões do mundo social, tendo em vista que isso depende das diferentes relações e representações que diferentes indivíduos e grupos tem com o virtual.

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Essa reflexão tem como ponto de partida os lugares que ocupo no mundo, seja como músico ou como professor. Enquanto músico, em diálogo com os integrantes da banda que faço parte[3], o contexto do isolamento nos levou a usar de forma mais sistemática as redes sociais, principalmente o Instagram.

Refletindo sobre essa situação, não só da minha banda mais dos demais músicos da ilha de São Luís (MA), entendi que nesse contexto pandêmico um músico ou uma banda só pode continuar “existindo” do ponto de vista simbólico (no sentido de ser conhecido e reconhecido) e no sentido material (sua arte é seu trabalho e é o que garante suas condições materiais de existência) por meio das redes sociais, do mundo virtual.

Enquanto professor, comecei a refletir sobre as dificuldades que os colegas relatavam diante da necessidade das aulas online por vídeo chamada, bem como sobre as dificuldades dos alunos. Esses dois contextos imediatos me levaram a pensar de forma mais ampla e em outras categorias profissionais e grupos sociais.

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Diante disso, gostaria de refletir sobre duas questões: 1) quem tem (e quem não tem) acesso ao mundo virtual no Brasil e quais as diferenças nos tipos de acesso entre os diferentes grupos? 2) Como a desigualdade no acesso a internet implica na desigualdade de possibilidade de reprodução social[4] em tempos de pandemia para diferentes produtores e consumidores (de conteúdos, serviços, produtos, etc)?

No que diz respeito à primeira questão, uma matéria do G1[5] cita a pesquisa TIC Domicílios produzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), divulgada em agosto de 2019, que mostra que 70% da população brasileira tinham acesso à internet em 2018.

No entanto, há diferenças regionais e de classes: nas regiões urbanas, 74% acessam a internet, na zona rural 49%, na camada mais pobre, 48% nas classes D e 42% na classe E. Há diferenças importantes também em relação ao tipo de dispositivo utilizado, 97% usou o celular, o uso do computador tem diminuído em geral (43% em 2018, contra 51% em 2017 e 80% em 2014).

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O celular é mais usado na zona rural (77% usam apenas o celular) e entre a população que ganha apensas um salário mínimo (78%). Em famílias com renda entre 1 e 2 salários, 63% usam apenas o celular, enquanto que famílias que ganham acima de 10 salários 80% usam celular e computador.

Outra matéria[6], publicada no site teletime.com.br, e também feita com base na TIC Domicílios de 2018,  mostra mais diretamente que a ampliação do acesso a internet está ligado ao acesso por rede móvel nas classes C, D e E. 85% das classes D e E usam internet pelo celular e a maioria depende de Wi-Fi.

Outro dado importante diz respeito aos diferentes usos, onde temos que 34% dos usuários fizeram compras e 19% divulgaram ou venderam produtos. Esses dados mostram que a desigualdade social implica numa desigualdade de acesso e de uso, algo que classifico aqui como uma desigualdade virtual-real.

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Nesse sentido, já é possível passar para a segunda questão, pensando em algumas categorias de produtores e consumidores de conteúdos e serviços, refletindo sobre quem tem condições de uso do mundo virtual que possibilite sua reprodução material e simbólica, ou seja, que permita que esses indivíduos e grupos continuem existindo publicamente, interagindo, sendo reconhecidos e garantindo suas condições materiais de existência.

Penso nos artistas com pouca visibilidade e que dependiam materialmente de apresentações rotineiras em pequenos bares; penso em pequenas ou médias escolas e faculdades privadas em que muitos professores e alunos tem dificuldades de utilização de plataforma ou com conexões de internet ruim ou com equipamentos com pouca qualidade (na maioria das escolas públicas, que não estão tendo aula, as dificuldades são as mesmas ou maiores e a ausência de aula causará grande impacto no ano letivo).

Penso, também, nos 12 milhões de desempregados no país, muitos dependendo do acesso (desigual) a internet para procurar vagas de emprego; penso nos pequenos e médios comércios (bares, restaurantes, lojas de roupas) que não tinham nas redes sociais um meio importante de venda e agora precisam vender virtualmente, e principalmente nos trabalhadores desses estabelecimentos que podem ser afetados com cortes de salários ou demissões com a queda das vendas.

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Uma matéria[7] publicada no nexojornal.com.br mostra que as compras pela internet, em 2017, diziam respeito a uma pequena parte das receitas de vendas comerciais no Brasil (são 7,6 milhões de trabalhadores no varejo, 1,7 milhões no atacado e 900 mil trabalhadores em vendas de automóveis e peças). É pertinente refletirmos quais os impactos do isolamento sobre esses números e, principalmente, de quem se tem comprado nesse contexto. Apenas dos grandes produtores?

Poderíamos pensar, ainda com base nessa última matéria citada, num grupo de trabalhadores muito específicos, os trabalhadores informais, que correspondem no início de 2020 a 40% do total de empregados no Brasil (38 milhões de pessoas). Parte desses trabalhadores trabalham por meio de aplicativos que funcionam via internet, como Uber, 99, Ifood e Rappi, que juntos são o maior “empregador” do Brasil, tendo 4 milhões de trabalhadores autônomos utilizando essas plataformas[8].

A questão para esses trabalhadores não é tanto o acesso a internet, já que um aparelho celular possibilita a utilização do aplicativo, mas sim o fato que o trabalhador real que usa o aplicativo e se torna um trabalhador existente, identificável e contratável no mundo virtual dos aplicativos, é um trabalhador sem vínculos empregatícios com a empresa de aplicativos (que lucram milhões a partir do trabalho dos entregadores), o que implica em não ter direito a FGTS, a seguro-desemprego, ou a licença médica remunerada (sem falar em férias, décimo terceiro, retribuição por titulação etc).

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Nesse sentido, o tipo de relação que se tornou possível a partir do mundo virtual tem impactos reais nas condições de trabalho e de vida desses trabalhadores, implicando no aumento de trabalhadores a margem da legislação trabalhista e portanto condições precárias de trabalho. Para esses trabalhadores, o trabalho por intermédio[9] do virtual já era terrivelmente real antes da pandemia e agora acrescenta-se à sua vulnerabilidade o risco de contaminação[10].

Esse último exemplo revela como o mundo virtual não é um mundo a parte das disputas reais entre grupos, que estão postas em nossa sociedade e que é preciso pensar as diferentes apropriações do virtual de acordo com as posições sociais dos indivíduos e grupos e das estratégias adotadas pelos grupos dominantes (no caso as empresas de aplicativos que conseguiram se articular como não contratantes ou não empregadoras) e dos grupos dominados (os trabalhadores que fazem o trabalho de entrega).

Mas se voltarmos para os exemplos anteriores, quando citei músicos, professores, comerciantes e desempregados, podemos refletir melhor sobre outros aspectos que gostaria de esboçar aqui. Tratam-se de outras dimensões que contribuem para reprodução da desigualdade em tempos pandêmicos que promovem uma “virtualização do real”.

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O uso do mundo virtual pressupõe o acesso as condições materiais mínimas como internet (4G ou Wi-fi), aparelhos (celulares, computadores, TVs, câmeras, notebooks). O acesso ou não acesso é um primeiro nível de desigualdade. Além deste, um segundo nível é produzido pela desigualdade econômica, tendo em vista que ter mais dinheiro implica em dispositivos melhores, com maior qualidade técnica. Mas há outros níveis de desigualdade que gostaria de mencionar.

Os usos desiguais do mundo virtual dependem de certos saberes, de conhecimentos técnicos (sobre como usar certos aparelhos) ou de saber falar ou saber apresentar e apresentar-se, ou de informações sobre circuitos compra/venda/contratação etc. Esses saberes são desigualmente distribuídos em nossa sociedade, da mesma forma que os diferentes usos das redes sociais dependem de uma rede de relações virtuais construída ao longo dos percursos individuais e coletivos (em suas diferentes dimensões, como familiar, escolar, profissional etc). 

Músicos, comerciantes, desempregados, professores e outras categorias profissionais se vêem diante da necessidade de saber fazer “bons vídeos ou fotos”, saber falar sobre si, saber construir uma imagem positiva sobre si ou sobre seus produtos, saber as melhores formas e horários para divulgar seu trabalho, conhecer um circuito virtual de compra, venda ou contratação, saber usar plataformas digitais ou se comportar diante de uma sala de aula virtual com pouca ou nenhuma interação.

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Nenhuma dessas habilidades é “natural”, todas são socialmente construídas e dependem das socializações dos indivíduos e das posições sociais que lhes permitiram ou não acessos a determinados saberes, habilidades e informações.

Além disso, mobilizar uma rede de contatos virtuais construídas pré-pandemia pode potencializar as suas ações e/ou te levar a contratação ou a venda do seu produto ou a “atalhos” sobre como usar plataformas que não impliquem em um longo investimento de tempo de aprendizagem. A questão é que essas redes de contatos virtuais também são desiguais e determinadas redes são mais potencializadoras que outras, mais cheias de “trunfos” para aqueles que fazem parte delas, assim como mais extensas ou “qualificadas” que outras.

Por fim, gostaria de destacar, ainda que sem espaço para aprofundamentos aqui, que as desigualdades brasileiras vão além das desigualdades econômicas, ou “culturais” (no sentido de acesso aos modos de vida considerados legítimos e que dão acesso a posições privilegiadas em nossa sociedade), ou relacionais (no sentido de redes de relações que te conduzem a privilégios).

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As desigualdades virtuais-reais também estão estruturadas pelas desigualdades raciais e de gênero. Todas as dimensões que foram discutidas aqui precisariam ser relacionadas a essas duas dimensões.

Para exemplificar brevemente, pensemos que se o mundo virtual é o mundo da imagem, então precisamos pensar sobre como as estéticas raciais dominantes (branca e ocidental) privilegiam brancos (as) em relação ao acesso e aos usos do virtual. Ou como as desigualdades de gênero (o sexismo, a misoginia e o patriarcalismo) implicam nos usos do virtual pelas mulheres em geral e pelas mulheres negras em particular. Esses aspectos merecem uma reflexão a parte[11]

Diante disso, concluo essa reflexão afirmando que a desigualdade diante do virtual é estruturada pelas desigualdades econômicas, “culturais”, raciais e gênero que estruturam nossa sociedade. As dificuldades das pessoas em se reproduzir material e simbolicamente nesse contexto pandêmico refletem as desigualdades materiais e simbólicas regulares, “normais”, que são naturalizadas em nossa sociedade.

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Precisamos compreender que as dificuldades nos usos do virtual não têm relação com incapacidade, ou falta de esforço, como pressupõe uma explicação que tem a meritocracia como base, mas sim com as desigualdades sociais que privaram indivíduos e grupos de recursos, condições, possibilidades econômicas, educacionais, informacionais e de trabalho ao longo da vida (algo próprio ao sistema capitalista).

De igual modo, quem se sobressai em tempos de pandemia não é por mero mérito, mas por sua posição social, suas condições, os saberes e as relações que teve e tem acesso.

Insistindo no trocadilho e na reflexão que deu origem a esse texto: o virtual é, portanto, real e relacional, e é tão real e tão relacional que é tão desigual quanto.


[1] Professor na Faculdade Santa Teresinha – CEST. Doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (PPGCSOC/UFMA). Integrante do Grupo de pesquisa Lutas Sociais, Igualdade e Diversidade da Universidade Estadual do Maranhão (LIDA/UEMA).

[2] Ver BOURDIEU, Pierre. Introdução a sociologia reflexiva.In BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 15ª ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2011.

[3] Banda Antídotos Sociológicos. Formada por dois sociólogos e um historiador, lançamos nosso primeiro álbum em 2019, intitulado “Fenda dos desesperados”. A banda se propõe a transformar nossas reflexões em música. Página no Instagram: @antidotosociologicos.

[4] Para compreender a discussão sobre reprodução social nos moldes propostos por Pierre Bourdieu sugiro BOURDIEU, Pierre. Reprodução cultural e reprodução social.In BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013b.

[5] Matéria intitulada “Uso da internet no Brasil cresce, 70% da população está conectada”. Vide: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/08/28/uso-da-internet-no-brasil-cresce-e-70percent-da-populacao-esta-conectada.ghtml

[6] O texto tem como título “Brasil tem 127 milhões de usuários  de internet, ou 70% da população”. Vide:  https://teletime.com.br/28/08/2019/brasil-tem-127-milhoes-de-usuarios-de-internet-ou-70-da-populacao/

[7] Matéria intitulada “Empregos informais: os mais vulneráveis à crise da pandemia”. Vide: https://bit.ly/30e1kGv

[8] A matéria tem por título “Apps como Uber e IFood se tornam “maior empregador” do Brasil. Vide: https://bit.ly/3cnfuHr.

[9] Ver o debate de Ricardo Antunes sobre o que ele chamou de proletariado digital. Sugiro: ANTUNES, Ricardo. Proletariado digital, serviços e valor. In ANTUNES, Ricardo (org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida: o mosaico da exploração. – 1. ed.- São Paulo: Boitempo, 2019.

[10] Para uma reflexão sobre esses trabalhadores que contenha humor (mas também dados), sugiro o episódio “Delivery”, do Greg News (apresentado por Gregório Duvivier) no canal da HBO Brasil. Link: https://www.youtube.com/watch?v=v3B9w6wWNQA

[11] Para o debate sobre as relações entre as dimensões raça, classe e gênero sugiro dois livros que li recentemente: 1) DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2016. 2) AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019.


O professor Leandro Costa (Foto: Divulgação).

Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento, desta maneira, abrimos espaço para profissionais que possam tratar de temas mais especificamente.

Leandro Costa é professor da Faculdade Santa Terezinha – CEST, é doutorando em ciências sociais pelo PPGCSOC-UFMA e membro do grupo de estudos Lutas Sociais, Igualdade e Diversidade (LIDA-UEMA). É também guitarrista da banda Antídotos Sociológicos (@antidotosociologicos). Para ler reflexões Sociológicas cotidianas siga-o no Instagram: @leandrocostacs.

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