(Foto: Divulgação / Camila Reis)
*Texto de Alberto Júnior, em colaboração ao SobreOTatame
Filha de sangue de Rosa Reis e Nelson Brito – integrantes do grupo que há mais de quatro décadas experimentaram criar um laboratório de expressões artísticas inspirados na cultura popular – Camila Reis cresceu acompanhada de mestres e fazedores de cultura, educada também nos terreiros do sagrado e da folia onde Dona Teté, Mestre Felipe, Mundica Paca, Dona Roxa, Mestre Apolônio e Mestre Patinho são protagonistas. A oralidade como prática metodológica da sabedoria.
Preta Velha – primeiro álbum da cantora – registra sete composições, todas autorais, que sugerem um passeio musical delicioso pela cidade com personagens, lugares e situações onde a linguagem, a espiritualidade, a futricagem e as vivências do jeito que o povo de São Luís tem de ser e estar. Todas já conhecidas por quem tem acompanhado as apresentações da cantora na cena cultural da capital maranhense.
Participam do trabalho como arranjadores e instrumentistas Jesiel Bives (teclados) e Fofo Black (bateria), e também Hugo César (guitarra), João Paulo Cardoso (baixo), Erivaldo Gomes (percussão), Jayr Torres (guitarra), Davi Oliveira (baixo) e Sebá (berimbau).
Ouvir o álbum é uma lúdica experiência de identificar ritmos que soam como mixagens orgânicas próprias da sonoridade polirrítmica dos grupos populares. O que parece simples quando a gente ouve uma canção e tenta definir a base percussiva apenas em uma referência (isso é boi de sotaque da baixada, aquilo é coco) vai ficando complexo quando cada instrumento revela outras células rítmicas e harmônicas próximas ao jazz fusion. Além dos ritmos, os territórios da paisagem sonora.
A primeira parada poderia ser no terreiro da Casa Fanti Ashanti. O disco abre com a canção homônima saudando a mais velha dos orixás dos cultos afros, Nanã, expressando a ancestralidade e reverência à força da mulher negra, com participação de Regina Arcanjo, personalidade que vive a cultura da cidade com o sorriso e a liberdade feminina em corpo e ginga. É bonito como o som misterioso dos badalos usados pelos cazumbas completam sutilmente os acordes dos teclados.
A segunda canção continua o espaço sagrado apresentando uma imagem bonita, de quase sonho, nos terreiros que celebram o império do Divino em São Luís ou Alcântara. Cantar é uma alvorada de toque do divino, sem o uso inicial da caixa, ganhou contornos ibéricos na guitarra de Hugo César e uma atmosfera misteriosa — própria do céu quando amanhece — e a tonalidade muda de acordes menores para acordes maiores recebendo a voz materna de Rosa Reis.
Depois, o convite é molhar os pés descalços nas águas da praia do Araçagy. A terceira faixa, um afoxé que acentua o talento do baixista Davi Oliveira e dos percussionistas Erivaldo Gomes e Sebá (berimbau) e celebra a fé na princesa das águas Janaína, a sereia menina.
Das águas do mar para afogar as mágoas no bar. Inspirada na sofrência, a Cê, Veja dá uma quebrada na narrativa mística com a quarta faixa do disco, um bolero que flerta com o brega e certamente vai fazer todo mundo terminar de ouvir no bar mais próximo da Beira Mar de São Luís.
Eu sou chique — quinta faixa — é provocadora e deliciosamente debochada. Um blues que empodera a personagem da canção na moda que ela mesmo inventa e tira onda de quem dá valor mais para marca e poder de compra do produto importado. Bom para tocar no shopping. Uma canção que merece também a voz da Célia Leite.
A sexta canção tem o refrão mais legal do disco. A síncope ‘bacuri e coco — coco e bacuri’ no meio de uma base de tambor de crioula mostra como até o jeito improvisado do Pregoeiro lembra o sampler de beats eletrônicos. Dá até para imaginar o som do tambor da Carla Coreira na Faustina sincronizado com a voz dos vendedores de sorvete caseiro da Praia Grande.
Preta Velha encerra com um coco que vira rock e é a energia que leva Maria, a personagem da canção Lá vai, Maria a ganhar o dia na luta pelo trabalho, com alegria, pressa e agilidade e, à noite, ganha as ruas com saia rodada para vadiar e namorar debaixo da goiabeira, danada que só (Claro, só lembro de dona Maria do Coco). A música tem a participação nos vocais do caboverdiano Hélio Ramalho, acentuando que a personagem pode ser a Maria que desperta sedução e encanto em muitos outros lugares da diáspora africana.
O lançamento foi numa noite de sábado (15/12), no Casarão do Laborarte, que virou um grande salão de artes reunindo performances, artes visuais, moda, culinária e cultura popular, com roda aberta do Cacuriá de Dona Teté e Tambor de Crioula do Laborarte.
“Preta Velha” é composta pelas faixas:
1 – PRETA VELHA (Camila Reis)
Part. Especial de Ana Regina Arcanjo
2 – CANTAR (Camila Reis e Isaías Alves)
Part. Especial de Rosa Reis
Música incidental: Canto de Luz (José Pereira Godão)
3 – JANAÍNA (Camila Reis)
4 – CÊ VEJA, DOUTOR (Camila Reis)
5 – EU SOU CHIQUE (Camila Reis)
6 – PREGOEIRO (Camila Reis)
7 – LÁ VAI MARIA (Camila Reis)
Part. Especial de Hélio Ramalho
Ouça, abaixo, o disco: