Júlia Naomí Rodrigues, mulher, trans, negra, moradora do bairro João Paulo (Foto: Reprodução/Arquivo).
Estamos vivenciando um momento no mínimo preocupante, num contexto de uma pandemia causada pela Covid-19, o novo coronavírus, que afetou fisiologicamente e emocionalmente todo o planeta. Mudamos hábitos, fomos obrigados a ficar em casa e olharmos para nossas particularidades, passamos a observar mais o comportamento da outra e do outro.
Percebemos o que mais nos afeta e entendemos que uma convivência forçada, mesmo com aquelas pessoas que mais amamos, não é tão simples de enfrentar.
Passamos a compreender que a solidariedade e o trabalho coletivo estão acima de nosso egoísmo, individualidades e privilégios. A realidade, sem sombra de dúvidas, não será a mesma, não voltaremos ao que éramos antes disso tudo começar, pois passamos a enxergar as diferenças, as indiferenças e a diversidade que nos cerca, a partir de um olhar mais sensível, mais delicado, mais acolhedor.
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Quem dera se daqui pra frente esse mesmo olhar passasse a ser um comportamento padrão, mas sabemos que onde há paz e ternura, o ódio e a guerra aliados à sede de opressão sempre ronda.
Neste texto, resgato o amor, o carinho, o afeto, típicos sentimentos que fantasiam o mês de maio, considerado popularmente como o mês das noivas. Nele, também lembramos datas significativas que nos fazem refletir esse contexto, onde de um lado está a violenta opressão de todos os dias e do outro, uma tentativa de resistência e acolhimento das pessoas oprimidas.
Vejamos: hoje, no dia 13 de maio, é lembrada a abolição da escravatura e para a Umbanda (religião de matriz africana), dia dos pretos velhos; no dia 17, é lembrado o dia internacional do orgulho LGBT.
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Queridas e queridos leitores, o texto de hoje traz uma personagem principal para ilustrar nossa reflexão de luta, opressão e acolhimento. Eu tenho um imenso prazer em apresentar uma pessoa de luz, que se chama Júlia Naomí Rodrigues, mulher, trans, negra, moradora do bairro João Paulo (bairro comercial e periférico de São Luís) e que segundo ela mesma, cresce em meio a outras mulheres fortes e determinadas, e que com estas aprendeu a lutar por seu espaço:
“Sobre mim? Não sou de desistir fácil, não me dou por vencida e acredito que todos têm sim o seu espaço, como também seu lugar de fala, desde que, isso não destitua outras pessoas”, comentou Júlia. Ao falar, especificamente, sobre a questão da transexualidade e travestilidade, ela considera que os dois termos estão no mesmo contexto:
“Me refiro à exclusão, falta de acesso e de oportunidades. São tantos os preconceitos que a melhor palavra para expressar nem que não seja nossa, mas é a mais apropriada: bullying. O preconceito é aberto, velado e institucional, que vai desde um empurrão, uma ameaça, um xingamento, um olhar torto, um apontamento, o cutucar em alguém, até a violação de direitos constitucionais como: saúde e educação.
Para a medicina, assim como para a sociedade, são duas identidades doentes: a transexual que é a coitada depressiva e suicida que quer fazer hormonização e cirurgias e a travesti que é a louca, prostituta, desbocada e ladra, então somos observadas enquanto doentes e um risco a sociedade e a si mesmas. Quando na verdade a desinformação leva a esse tipo de dedução, que se impregna no imaginário coletivo, falta atentar para o fato de que a identidade travesti é uma identidade política”.
Nessa carona da violência, perguntei à Júlia o que ela tinha a falar sobre esse processo de discriminação sofrida pela população trans no Brasil. Ela comentou que “(…) chegou a seu limite e tem que ter um basta, não adianta decretos, projetos e palavras bonitas, temos que ter leis que assegurem o direito de ir e vir de um/a cidadão/ã. Atento para o fato de que a violência não é somente física, ela é também institucional, moral e social. Se apregoa de que pessoas trans não querem estudar, mas como é que uma pessoa trans vai frequentar um ambiente escolar sendo que neste ambiente ela constantemente hostilizada?
Todo dia uma agressão diferente, é um menino que diz que vai cortar o cabelo, outro que bate, outro que empurra, outro que assedia, quem ficaria em um lugar como este? Sem falar do preconceito e discriminação que vem dos funcionários dessa instituição, que são despreparados para lidar com a diversidade. Falta preparo, falta pensar no outro enquanto ser humano e falta respeito”.
E acrescentou um relato muito pessoal: “Durante o processo de retificação de registro civil, sofri discriminação dentro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, ou seja, o último lugar onde isso deveria acontecer, em uma sala cheia de pessoas (advogados e partes), uma atendente na tentativa de fazer um “elogio”, me expôs, fazendo com que de anônima eu passasse a ser o centro das atenções. Vamos melhorar, vamos capacitar os colaboradores e funcionários”.
Vale informar aqui que, segundo o Relatório do Grupo Gay da Bahia, intitulado Mortes violentas de LGBT+ no Brasil – 2019, 329 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) tiveram morte violenta no Brasil no ano passado, vítimas da homotransfobia: 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%). Comparativamente aos anos anteriores, observou-se em 2019 uma surpreendente redução das mortes violentas de LGBT+.
De acordo com o coordenador da pesquisa, o antropólogo Luiz Motti diz que “a explicação mais plausível para tal diminuição se deve ao persistente discurso homofóbico do Presidente da República e sobretudo às mensagens aterrorizantes dos ‘bolsominions’ nas redes sociais no dia a dia, levando o segmento LGBT a se acautelar mais, evitando situações de risco de ser a próxima vítima, exatamente como ocorreu quando da epidemia da Aids e a adoção de sexo seguro por parte dessa mesma população” (SILVA, 2020).
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Comportamento preventivo observado igualmente agora face à pandemia do coronavírus, em que o segmento LGBT vem desenvolvendo novas e específicas estratégias de sobrevivência.
O medo, portanto, fez as pessoas LGBT recuarem, ou quase “voltarem ao armário”. E mesmo com essa pequena redução, de acordo ainda com o relatório supracitado, a cada 26 horas, um LGBT+ é assassinado ou se suicida vítima da LGBTfobia, o que confirma o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais.
Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais e transexuais no Brasil do que nos 13 países do Oriente e África onde persiste a pena de morte contra tal segmento. Mais da metade dos LGBT assassinados no mundo ocorrem no Brasil (WAREHAM, 2020).
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Ainda segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), durante a crise sanitária gerada pelo Covid-19, o número de assassinatos de pessoas trans aumentou em 13% entre os meses de março e abril – em relação ao mesmo período de 2019.
Nesse sentido, de prevenção e combate às violências e discriminações, lembro que eu e a Júlia fomos convidadas por diversas vezes a dividir alguns espaços para palestras ou rodas de conversa. Lembro que sempre nos repetíamos nas falas em todos esses encontros, e lembro, também, de que comentamos, por diversas vezes, de que falávamos de nós para nós mesmos. Ambos, hoje, pensamos muito antes de aceitar tais convites, não só pelo cansaço do que falamos, ou pelo cenário esvaziado das plenárias, mas porque pensamos que precisamos ocupar outros espaços, falar para outras pessoas, repensar estratégias de luta e reconstruir formas de se colocar como pessoas LGBTs:
“Quando penso a educação no Brasil, penso em exclusão, doutrinação, segregação. A educação deve ser reformulada, os profissionais da educação devem ser capacitados e nesse ponto cito a academia como uma das fundamentais para isso. Quantos profissionais da educação (e de outras áreas do conhecimento) tiveram uma cadeira de gênero e diversidade? Como pode ser a ‘educação um direito de todos’, quando ‘esses todos’ não conseguem acessar? A associação que faço com a escola é a de prisão, ambas as instituições têm grades, sirene, regras e seu administrador/ditador. O sistema educacional precisa de reformas, precisa ser inclusivo, precisa ser acessível à todos, até então observo que ‘a escola não apenas entende de diferenças e desigualdades como as produz’ (Guacira Louro)”, comenta Júlia.
Nesse contexto da educação, perguntei à Júlia sobre suas vivências escolares e ela me contou que foi uma passagem tranquila: “Sempre fui seria e fechada então isso fazia com que as pessoas não se aproximassem de mim, a não ser às que eu permitia. Só tive dois contratempos onde tive que dar um soco em um menino e jogar mingau quente na cara de outro, mas tranquilo”.
Ao falar das vivências acadêmicas, Júlia comenta de uma vivência mais dolorida: “Tenho duas graduações: designer de Interiores pelo CEUMA e Hotelaria pela UFMA. No CEUMA, eu era invisível até que precisasse reivindicar algo e, até então, eu não era a Júlia. Não externamente. Na UFMA, foi um tanto inusitado. Minha chegada gerou um certo burburinho, onde as pessoas passavam no corredor querendo saber quem era a trans que estava na Federal. Estranho porque já haviam outras pessoas trans na UFMA. Vendo o lema da universidade: “a universidade que cresce com inovação e inclusão social”, não me via contemplada por essa tal inclusão e usei de seu próprio lema para reivindicar o nome social. Fui muito feliz, pois tive apoio de vários professores (tanto do meu curso, quanto de professores que conheci e convivi), como também de colegas. Em setembro de 2015, após 2 anos de empreitada, o nome social foi instituído e passou a vigorar”.
Júlia é uma mulher de muitas lutas. Recentemente, ganhou mais uma: sim, ela é a primeira mulher transexual a ocupar uma vaga num programa de pós-graduação, no Estado do Maranhão. Embora um dado festivo pelo pioneirismo, veja o que ela fala sobre:
“Foi recompensador. Claro, não foi fácil, até porque pesava não só o conhecimento a ser testado, mas também os olhares e comentário quando chegava aos locais das provas. Ouvi de várias pessoas, algumas que já haviam tentado o mestrado, que a pós-graduação da UFMA não era destinada às pessoas negras, pobres e LGBT’s. O que seria motivo para desanimar, me motivou e encorajou ainda mais. Houveram barreiras, mas aqui estou: mulher, negra e trans. Se eu posso, qualquer pessoa pode”.
Júlia considera que essa aprovação não deixa de ser simbólica e representativa: “uma conquista solitária e reflexiva, mas uma conquista”. Entretanto, “precisamos refletir sobre a falta de oportunidade, o desamparo familiar e social, a violação de direitos, a omissão do estado rouba sonhos, destrói vidas e segrega pessoas, cidadãos e cidadãs, seres humanos”, acrescenta ela. “São muitas as meninas trans e meninos trans que não queriam ser médicos/as, advogados/as, administradores…, e tem seus sonhos destroçados pelo preconceito e pela discriminação”.
Ao falarmos sobre política e a avaliação do governo federal, Júlia disparou: “Na verdade, não se tem como avaliar o que não existe. O que temos são gambiarras que em uma canetada se desfazem. Há um descaso com a população LGBT, um pacto de anulação e de invisibilização. Em verdade, o que existe são vários projetos de lei tramitando há anos”.
E me repassou uma lista com todos esses projetos que estão parados, esperando por votação. Nesse sentido, observamos que as pautas LGBTs são irrelevantes para o Estado, mesmo que documentos sejam apresentados apresentando os dados dos inúmeros preconceitos, discriminações, violências que a comunidade LGBT sofre, nada é feito para que legalmente essas pessoas sejam respeitadas e visibilizadas. Entretanto, nos comprometemos, falar deles aqui, em uma outra reflexão, dessa vez, no campo do jurídico.
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Ainda sobre o campo da visibilidade, Júlia diz: “A passabilidade é um desejo de todos: transgêneros e cisgêneros. As modificações que um cisgênero faz em seu corpo (desde umas luzes nos cabelos, implante de silicone, remoção de pelos, uso de anabolizantes e hormônios, entre outros) são busca por passabilidade, ou seja, a busca por um “padrão”, o desejo de entrar numa caixa. As modificações que um transgênero faz em seu corpo são para não chorar na frente do espelho. Não julgue alguém pela aparência que tem”.
A partir de tudo que foi dito até aqui: há motivos para se comemorar a abolição da escravatura? Quais? Por que o Brasil é um dos países que mais assassina jovens negros/as e por que será que grande parte dessas pessoas se encontram nas periferias? O que faz o país que tem mais de 50% de sua população composta por pessoas pretas, ser tão racista?
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Por que ficamos tão felizes e emocionados/as ao ver uma pessoa preta se tornar milionária num programa de TV ou estar num curso de medicina, quando isso deveria ser comum? De que forma nós somos orgulhosos/as por sermos gays pretos? Ou travestis pretas? Será que somos orgulhosos/as pela comunidade LGBT como um todo ou só quando o nosso “eu” está em jogo? De que orgulho a gente está falando?
Obrigado, Júlia pela tua disponibilidade e ensinamentos. Você é luz e uma fonte de inspiração para milhares de pessoas que a partir de hoje não vão se sentir sozinhas, o quilombo da nova geração está se erguendo, a revolução já começou e você é símbolo dela.
A primavera será colorida, tempos de acolhimento estão surgindo e você é fundamental e necessária na construção desse novo florescer: uma borboleta responsável pela polinização de nosso jardim. Voa que o mundo precisa de te!
E para não me alongar, deixo uma mensagem das pretas e dos pretos velhos, guias de luz, que diante de um mundo tão adoecido, nos falam:
“Toda riqueza da diversidade é costurada com a linha do amor”.