Por Bartira Oliveira, psicóloga.
A preocupação com a saúde psíquica no Brasil vem passando por mudanças significativas desde a década de 80. Neste período, o movimento feminista alavancou a tentativa de se estabelecer um novo tipo de abordagem e tratamento psíquico da mulher contrapondo o modelo biologizante vigente à catalogação diagnóstica dos transtornos mentais e à medicalização da vida. Nascem, então, propostas feministas de formação de grupos temáticos com ênfase na saúde psíquica e na violência contra a mulher.
Na década de 90, no entanto, foi a Organização Mundial de Saúde (OMS) que declarou a violência contra a mulher como “um problema de saúde pública”, e definiu a necessidade de estender o conceito de saúde psíquica da mulher para setores de ordem socioeconômica, cultural, jurídica e política.
A OMS alertou sobre os impactos de determinantes sociais na saúde feminina tais como desigualdade de gênero, o machismo brasileiro, a violência doméstica e sexual, e tantas outras violências que agravam este adoecimento psíquico feminino e nos leva a uma estatística comovente: transtornos depressivos e transtornos de ansiedade surgem com maior prevalência nesta população específica.
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Entre os anos de 2001 e 2003, no Brasil, houve dois marcos importantes no que tange ao tratamento psíquico das mulheres: A Reforma Psiquiátrica e a criação da Secretária Especial de Políticas para as Mulheres (SPM).
O primeiro nos trouxe a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001) a qual “ dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”; o segundo, a SPM disponibiliza ações integradas, criação de normas e padrões de atendimento voltado para as mulheres que sofreram violência, além de propiciar educação e legislação específicas, redes de serviços com foco na prevenção em saúde mental das mulheres e maior acesso às redes de apoio jurídicas, de saúde e segurança pública.
O cenário da saúde mental brasileiro vem se modificando e se aperfeiçoando nas últimas quatro décadas, o que, infelizmente, ainda não nos confere uma condição confortável no que se refere à mulher; falta, por exemplo, uma atenção para um viés de gênero na criação dos diagnósticos, no atendimento e tratamento da saúde psíquica feminina.
Ainda perdura a invisibilidade do gênero, a dominação do modelo farmacológico ditado pela indústria farmacêutica e a medicalização como a principal forma de tratamento. Desta maneira, prevenção em saúde mental no Brasil é uma realidade muito distante, quase que inacessível.
A reitificação da saúde mental ainda interfere na neutralidade de condutas, trazendo o psiquismo para o político e indaga as relações de poder e os valores neste âmbito tão complexo e multifacetário. Os rótulos e estigmas atribuídos às mulheres, como “Histriônicas”, “Dramáticas” e “Loucas” acaba por biologizar o sofrimento mental apartando-o das questões sociais.
Sabe-se que a mulher apresenta uma vulnerabilidade biológica referente às alterações endócrinas, às diferenças na circuitaria cerebral, mas não apenas isto, agora é imprescindível assumir uma visão mais integralista do adoecimento psíquico feminino, amplificando-o às suas condições de vida, em cada fase específica, incluindo as variáveis socioeconômicas, culturais, educacionais, saúde global, estilo de vida, dentre tantas outras.
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De acordo com uma pesquisa recente da OMS (2017), a depressão será, em 2020, o maior motivo de afastamento no trabalho no mundo. No Brasil, cerca de 5,8 % da população apresenta este transtorno, o que faz do país o campeão da América Latina. Ainda de acordo com a OMS, as mulheres são as que mais sofrem com a doença, sendo que a taxa de incidência de depressão nas mulheres chega a ser 150 % maior do que na população masculina.
Em relação aos dados de incidência da ansiedade (OMS, 2018), considerada como o “mal do século”, o Brasil apresenta, infelizmente, o maior índice de ansiedade do mundo, com cerca de 9, 3 % da população acometida; mais uma vez é a mulher a mais afetada, com cerca de 7, 7 % dos casos.

SobreOTatame: Dadas as estatísticas, cabe o questionamento: como promover saúde mental no processo de desenvolvimento da mulher no Brasil?
Os estudos científicos sobre os transtornos mentais nas mulheres brasileiras e a correlação com as variáveis socioeconômicas e demográficas como idade, etnia, nível de escolaridade, ocupação, renda per capita, estado conjugal e número de filhos ainda são poucos; porém, uma pesquisa consistente sobre Transtorno Mental Comum ( TMC) em mulheres adultas e a identificação dos segmentos mais vulneráveis ( SEMICATO, C., AZEVEDO, R.C.S.R. & BARROS, M.B.A., 2018) nos fornece alguns dados relevantes sobre este tema.
O nível de escolaridade e a ocupação das mulheres faz muita diferença na promoção de saúde psíquica ao longo da vida. Mulheres que têm acesso à educação (mínimo de oito anos de escolaridade) estará mais protegida das doenças como depressão e ansiedade; isto porque o acesso à educação gera habilidades cognitivas , assertividade e capacitação para tomada decisória, fornecendo então a possibilidade de maior autonomia, controle da fertilidade, qualidade na alimentação e bem estar econômico e social.
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A ocupação ou trabalho também ocupa lugar importante na prevenção de doenças psiquiátricas pois possibilita às mulheres uma rede de apoio social mais ampla, menor independência financeira dos cônjuges, melhor estruturação da autoestima, maior satisfação e melhor qualidade de vida; o estresse e as tensões cotidianas ficam mais diluídas através desta interação com um ambiente social mais amplo.
SobreOTatame: E quais então são os fatores de risco mais importantes no desenvolvimento de transtornos psíquicos femininos?
A mulher contemporânea assumiu uma série de papéis sociais, ao mesmo tempo; com a emancipação feminina foi estabelecido um novo modelo de mulher; ela é filha, esposa, mãe, profissional, provedora, cidadã, e ainda precisa atender aos ditames dos padrões de beleza definidos por esta cultura. O somatório de funções sociais leva à sobrecarga e exaustão somando-se a isso o perfeccionismo da sociedade, portanto, tais fatores têm influência direta no bem estar e na saúde psíquica da mulher.
O nível de estresse é um dos fatores determinantes para o aparecimento da doença psíquica, no entanto, ainda há pouca conscientização sobre a importância da reestruturação do modo de vida urbano.
Neste contexto, a mulher observa, entorpecida, a sua falta de tempo; os excessos generalizados diante da carga de trabalho ( tanto fora de casa como domesticamente), acrescido do pouco reconhecimento da família e da sociedade; a alimentação desregrada, pobre em zinco, magnésio e ácido fólico; poucas horas de sono, o lazer e as atividades físicas ; o cansaço, a fadiga e o surgimento de doenças crônicas e cardiovasculares como comorbidades aos transtornos psiquiátricos.
E como isto tudo não bastasse, a brasileira ainda está condenada a viver num país cujo índice de violência contra a mulher encontra-se na quinta posição em relação ao número de homicídios no mundo. A violência contra a mulher, segundo a OMS, é um dos fatores de maior impacto e principal causa da depressão em mulheres. Portanto, a violência contra a mulher é uma grave ameaça à saúde mental feminina.
Este fenômeno complexo está completamente enraizado nas relações de gênero baseada no poder que envolvem as questões de sexualidade, autoidentidade, tabus e preconceitos envolvendo as instituições sociais.
Para concluir, a prevenção e tratamento adequados dos transtornos psíquicos da mulher no Brasil estão bem longe de serem efetivados. Faz-se urgente a necessidade de mudar as percepções da sociedade civil acerca do valor da mulher, revisando os princípios dos direitos e da dignidade humana, a fim de transformar a invisibilidade feminina brasileira em distinção, respeito e soberania.
O investimento em educação e promoção de uma economia favorável à empregabilidade da mulher deveriam ser prioridade neste país. A determinação para o estabelecimento de condutas na política de saúde psíquica da mulher torna-se imprescindível ao estabelecimento de um quadro satisfatório de saúde psíquica da mulher saudável.
FACURI, Cláudia de Oliveira. Características sociodemográficas e sintomas psíquicos de mulheres vítimas de violência sexual. 2012.
SENICATO, Caroline; AZEVEDO, Renata Cruz Soares de; BARROS, Marilisa Berti de Azevedo. Transtorno mental comum em mulheres adultas: identificando os segmentos mais vulneráveis. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, p. 2543-2554, 2018. |
Iniciativa Elas SobreOTatame
Este texto faz parte do Elas SobreOTatame: uma iniciativa do SobreOTatame que aborda temas do universo feminino ao longo do ano, em textos, podcasts, encontros presenciais e convidados especiais. Tudo isso sob o comando da mulherada do site.
No segundo bloco, ocorrido entre abril e junho, a temática foi sobre Maternidade:
- Nós e nossas mães: uma reflexão sobre a relação entre mãe e filhas
- Violência obstétrica: a maternidade não deve começar assim!
- Puerpério: seis relatos de experiências sobre a desromantização do pós-parto
- 2º Encontro Elas SobreOTatame: Maternidades
- Com apoio da SEMU, Encontro Elas SobreOTatame debate sobre “Maternidades” em nova edição
- Às mães solo, com amor e empatia
Cada bloco dura três meses, com uma temática escolhida. O primeiro foi sobre Prazer Feminino e Autoconhecimento. Durante os meses de janeiro a março, vários materiais sobre esta temática foram publicados:
Podcast SoT EP01 – Do Luxo ao Lixo: experiências em apps de paquera
Tornando-me mulher com outras mulheres
Elas SobreOTatame entrevista Seane Melo