(Foto: caracterdesign/Getty Images).
O dia primeiro de abril é rememorado mundialmente há séculos como o Dia da Mentira.
Alguns associam o dia a Loki, o deus nórdico das trapaças, outros contam que a origem remonta ao ano de 1564, quando Carlos IX, rei da França, determinou a mudança da data do Réveillon da noite de 31 de março para a noite de 31 de dezembro, seguindo o recém-criado calendário gregoriano.
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Os franceses mais conservadores não se adaptaram à alteração e continuavam comemorando o ano novo em primeiro de abril, o que prontamente virou motivo de chacota e brincadeiras dos seus compatriotas, que mandavam presentes inusitados e faziam convites para festas que nunca iriam acontecer.
Conta-se que, no nosso país, a tradição teve início em 1828, com um jornal chamado “A mentira”, que divulgou como manchete e com seis anos de antecedência, a morte de Dom Pedro, então Imperador do Brasil. Na nossa história recente, essa data rememora outro evento cercado de mentiras, mas sem a mesma graça das brincadeiras: o Golpe Civil-Militar de 1964.
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A primeira mentira tem a ver com a insistência de setores dos militares de relembrar e comemorar em dia diferente do ocorrido. Isso porque a deposição de João Goulart se deu somente no dia 1º de abril. Para que a versão oficial sobre a necessidade da dita “revolução” fosse bem contada e não fosse associada à tradição do Dia da Mentira, os golpistas passaram a propagar que vários eventos teriam ocorrido no dia 31 de março.
Outra mentira é a versão de que não se tratou de um golpe. O Presidente da República estava em solo brasileiro quando o então Presidente do Senado, Audo de Moura Andrade, decretou a vacância do seu cargo sob a justificativa de que João Goulart teria saído do país sem a autorização do Congresso Nacional. Assumiu o cargo o Presidente da Câmara dos Deputados, com o aval do STF, “guardião da Constituição Federal”.
Por fim, dentre tantas outras, há a mentira de que o país foi salvo de uma ditadura comunista pelos golpistas. Pelo menos desde a década de cinquenta, a UDN já propagava o medo e a paranoia contra os partidos alinhados à esquerda e já se ensaiava um golpe civil-militar. Em 1955, graças ao General Lott, a legalidade prevaleceu e JK pôde assumir a presidência. O risco de uma ditadura comunista no país à época era o mesmo de agora: zero.
Apesar da data se fundar em diversas mentiras e na contramão de todos os países que passaram por regimes autoritários e hoje os repelem, o governo federal determinou, ano passado, que se fizessem “as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964”.
Pergunto: o que o governo pretendia que fosse comemorado? As torturas com inserção de ratos nos órgãos sexuais femininos? As crianças sequestradas e adotadas ilegalmente por militares? O fechamento do Congresso Nacional? A suspensão dos direitos civis e políticos? A repressão e censura às manifestações artísticas e políticas por 25 anos? O aumento das desigualdades econômicas no país?
Resta a cada vez mais parca esperança de que saibam que estão errados, de que ainda haja algum recato e vergonha nos setores militares que pediram ao atual Presidente da República que as comemorações fossem discretas, mesmo quando sequer deveriam ocorrer.
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Este ano, as mentiras se repetem. A ordem do dia publicada em 30 de março de 2020 pelo Ministro de Estado de Defesa, alusiva ao dia 31 de março de 1964, traz mais uma série delas. Vende o golpe militar como “movimento de 1964” e, pior de tudo, “como um marco da democracia brasileira”, segundo o Ministro, “muito mais pelo que evitou”. A mesma ideia tem sido defendida pelo Vice-Presidente da República, para quem os militares intervieram na política para enfrentar a desordem, a subversão e a corrupção.
Não é preciso se pesquisar muito para ver que, similar aos dias de hoje, somente a corrupção dos inimigos era perseguida e investigada, enquanto os amigos da ditadura se beneficiavam enormemente de um governo sem compromisso com a transparência e com a vigilância democrática das contas e negócios públicos.
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A cada ano, as mentiras vão se sedimentando e consolidando a narrativa militar. Se não tomarmos as medidas que deveriam ter sido tomadas desde a abertura política, nossos livros didáticos constarão unicamente de mentiras e toda uma geração estará em risco.
“Tanta mentira, tanta força bruta…”. Quantas pegadinhas como esta a democracia ainda aguenta?
Para mais, leia em:
https://super.abril.com.br/historia/mito-na-epoca-da-ditadura-militar-nao-tinha-corrupcao/;
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