(Ilustração: Alma Preta/Reprodução).
Outubro de 1992. San Cristóbal de las Casas, México. Enquanto os herdeiros dos colonizadores comemoravam o V Centenário do Descobrimento das Américas por Cristóvão Colombo e o Dia da Raça, a celebração dos laços entre os países americanos e a Espanha, os herdeiros dos povos colonizados rememoravam 500 anos de opressão, exploração e racismo sofridos, mas também de resistência indígena e popular. Decidiram marchar.
Mais de 15.000 pessoas dos povos descendentes dos maias caminharam pelas ruas da cidade e derrubaram a estátua de Diego de Mazariegos, filho da nobreza castelhana e responsável por, em 1528, fundar a cidade e massacrar os povos nativos, levando-os ao trabalho forçado e a inúmeros outros tormentos.
Conta-se que um dos povos, acuado entre os soldados de Mazariegos e um abismo, escolheu jogar-se ao vazio que cair nas mãos dos espanhóis.
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Junho de 2020. Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, Bélgica, Itália. Em várias partes do mundo, os protestos antirracistas surgidos a partir do abuso policial e da morte de George Floyd deram início a um movimento de picho e derrubada de estátuas de colonizadores, traficantes de escravos, abusadores de menores, genocidas.
Aqui no Brasil, após algumas manifestações pela derrubada da estátua de Borba Gato, bandeirante paulista que dedicou sua juventude a caçar indígenas para escravizá-los, o jornalista Laurentino Gomes manifestou-se em defesa da permanência da obra: “Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão”.
Mas o que são as estátuas dessas pessoas senão celebrações, comemorações das suas vidas e obras, dos seus “grandes” feitos que devem ser eternizados? Como preservá-las em seus locais de instalação, sem manter a sua aura, sem o caráter de homenagem, apenas para fins puros de estudo e reflexão?
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Impossível não lembrar das palavras de Walter Benjamin, para quem “todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”, fazendo com que as celebrações da vida dos colonizadores representem do que o seguimento da violência contra os vencidos.
Estes, que, oprimidos ao longo dos tempos, ainda são obrigados a comemorar os aniversários dos seus algozes, morando em ruas e bairros com seus nomes, depois de construir com seu trabalho e sangue, as obras que os homenageiam. “Todo monumento da cultura é um monumento da barbárie”, diz Benjamin.
Hoje é impossível andar por qualquer cidade no Brasil sem passar pela Avenida Presidente Médici, atravessar a rua Marechal Castelo Branco, e chegar à praça Costa e Silva, quando o próprio nome da cidade não é a própria homenagem aos militares, sem falar nas inúmeras escolas, memoriais, etc aos repressores e torturadores de diversas épocas.
Como refletir e superar o passado em um presente que celebra e comemora escravagistas, torturadores e genocidas?
A filosofa Jeanne Marie Gagnebin, em comentário ao pensamento benjaminiano, traz uma distinção que pode nos ajudar a encontrar uma resposta, ao dizer que não existe similitude entre a rememoração e a comemoração.
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Enquanto a primeira é coletiva, política e vê o sofrimento do passado como algo aberto, com apelos ao presente, chamando-nos ao dever de repará-lo, para seguirmos em frente, a segunda não permite uma elaboração adequada do passado, implicando em uma memória pervertida, que celebra um passado recalcado através de um esquecimento feliz das dores dos oprimidos e que permite a repetição da violência.
Outra referência que pode nos conduzir a uma resposta é o poema “Ozymandias” (em referência ao nome grego do faraó Ramsés II), de Shelley. O texto, escrito em 1818, fala de um viajante que, ao encontrar o poeta, conta de uma ruína encontrada em uma terra antiga.
“Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo/
Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante, /
Afundando na areia, um rosto já quebrado, /
De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante”
No pedestal, estas palavras notareis:
“Meu nome é Ozymandias, e sou Rei dos Reis:/
Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!” /
Nada subsiste ali. Em torno à derrocada/
Da ruína colossal, a areia ilimitada/
Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada”.
Já o dramaturgo alemão Bertold Brecht, no poema “Perguntas de um trabalhador que lê”, de 1935, vai indagar:
“Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas? /
Nos livros estão nomes de reis; os reis carregaram pedras? /
E Babilônia, tantas vezes destruída, quem a reconstruía sempre?”
Caídas as estátuas, os palácios e, muito antes deles, os dominadores, são as palavras dos poemas que imortalizam a ideia de que, assim como não se fazem sozinhos, também não se destroem sozinhos os grandes monumentos de celebração da barbárie humana.
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Hoje, os pedaços da estátua de Diego de Mazariegos circulam em museus pelo México, contando a história do colonizador e de um povo que, 500 anos depois, lembra e resiste.
Sobre a queda da estátua e ignorando qualquer olhar frio e arrogante vindo do pedaço de pedra, Galeano, subcomandante zapatista, disse: “Sem muito ruído, a estátua do conquistador caiu. Se voltaram a levantá-la, não importa. Nunca poderão levantar de novo o medo daquilo que ela representava”.
*Ilustração da capa publicada originalmente no site Alma Preta, na matéria “Cinco monumentos racistas existentes em São Paulo”. A publicação da imagem neste post foi autorizada pelo Alma Preta.