Reciclando Vidas: mulheres, sustentabilidade e economia criativa

*Reportagem escrita por Steffi de Castro e Thaísa Viegas. Fotos por Thaísa Viegas.

Às 14h em ponto, eu (Steffi de Castro) e Thaísa Viegas estávamos na porta do Terminal de Integração da Praia Grande esperando pela Rebeca, a responsável por nos levar até a sede da Nave na Vila Rosinha, na Raposa. Enquanto eu estava escrevendo, fui procurar no google maps a distância entre esses dois pontos.

Vila Rosinha é um povoado que ainda não aparece no mapa e, de fato, eu, que vez outra transito pela Raposa entre as praias, não conhecia aquele outro lado do município. A viagem deve ter durado, de carro, uns 40 min até a avenida principal da Raposa, da avenida até a sede do projeto, provavelmente uns 20 minutos de estrada de terra batida (andando, eu não sei nem quanto tempo levaria). Eu e Thaísa nos olhamos e pensamos a mesma coisa: “como faríamos se tivéssemos vindo sozinhas?”. Certamente não encontraríamos o lugar. Felizmente, a Nave sabia disso e ao solicitar nossa presença, teve todo esse cuidado.

Leia também | Mulheres negras e o protagonismo na cena cultural brasileira

A vontade de realizar esse projeto que é o “xodó” da ONG é tão grande, que essas dificuldades se fazem pequenas. Ouvimos os relatos de vários carros atolados em tempos de chuva e de outras situações de perigo que não inibiram as educadoras sociais.

A relação da ONG Naves com o Reciclando Vidas é especial – segundo Rebeca, esse projeto faz parte da história da ONG desde o começo:

Rebeca Alexandre

“Eu sou assistente social e sempre tive uma preocupação com as desigualdades e a minha mãe era terapeuta holística. A gente sempre foi muito ligada à arte e à cultura. Nós sempre sonhamos em trabalhar com cidadania, igualdade social, por meio de práticas integrativas, trabalhar com saúde, cultura, arte… A cultura principalmente, porque é sobre me conhecer, fortalecer a identidade, e a arte porque tudo é muito lúdico. Quando viemos pro Maranhão, minha mãe começou a atender aqui na Raposa, mas chegou uma hora que não tinha mais como continuar por falta de recursos. Então, fundamos a ONG. Nós ficamos muito tempo pesquisando, mapeando, fazendo ações sociais, pra conhecer o público e também pra gente se entender. Aprendemos fazendo. Muitas cabeçadas. Até que aprovamos o primeiro projeto, que é o Reciclando Vidas, esse projeto que está até hoje”. (Rebeca Alexandre)

No meio do caminho, é possível ver as hortas e plantações que são o principal sustento da comunidade de Vila Rosinha. Rebeca para algumas vezes e conversa com moradores que conhece já tem um tempo. A ONG de fato tem um vínculo com a comunidade, que era, inclusive, um dos principais objetivos do projeto na etapa que se encerrava naquele dia.

Leia também | Coisa Mais Linda: mulheres, feminismos e sororidade

A sede da ONG é simples, mas muito acolhedora. Todas vestiam a camisa do projeto, literalmente. Algumas crianças também participavam, acompanhando suas mães ou avós. O clima era de celebração, embora muitas lágrimas tivessem corrido nos olhos das coordenadoras e também das mulheres da comunidade enquanto a apresentação era feita.

Naquela tarde, eram apresentados para as participantes os resultados do trabalho coletivo durante os meses que se passaram. Eu e Thaísa sentamos e vimos tudo atentamente: estavam todas orgulhosas! Pra nós, olhares atentos de fora, foi fácil perceber que havia algo ali que ia além de aprender uma nova forma de se sustentar. Depois de conversar um pouco com algumas delas, isso foi ficando mais visível aos nossos olhos.

“Eu quero trabalhar na sombra”

Maria de Nazaré participa do projeto desde o começo e, para ela, ele representa a chance de trabalhar com mais dignidade e tranquilidade:

Maria de Nazaré

“Estou aqui desde a primeira etapa, desde o começo eu gostei. Nunca parei, nunca desisti. Eu quero aprender mais e mais. O que eu não sabia, hoje eu sei. Aprendi a fazer cadernetas, envelopes, caixinhas, luminárias… É uma grande satisfação aprender. Nós iremos juntar nossas forças, umas com as outras, pra gente trabalhar juntas aqui. Nós precisamos, somos mulheres trabalhadoras, muitas como “de horta”, como eu. Eu espero uma vida melhor pra mim. Poder trabalhar na sombra. No sol a gente vai se cansando… Eu espero que daqui eu posso aprender e fazer e assim eu poder tirar meu sustento, como eu tiro da minha horta”. (Maria de Nazaré, 47 anos).

Leia também | Tornando-me mulher com outras mulheres

Não é fácil se deparar com um depoimento tão singelo como o de dona Nazaré, alguém que tem no corpo as marcas feitas pelo castigo do sol, do esforço em trabalhar dia, após dia na lavoura, mas que ao mesmo tempo projeta um futuro e nos ensina uma grande lição. Trabalhar na sombra significa muito para essa senhora, que sorria timidamente para câmera, trabalhar sem a dor da queimadura, era tudo, é um sonho. 

Sonho esse que um projeto, que pode parecer até pequeno, tem proporcionado a uma mulher que tira da terra o seu sustento. Proporciona a possibilidade de trabalhar na sombra, de não doer mais, de não sofrer mais tanto assim como na lavoura. A reciclagem do papel que se mistura com a matéria orgânica também recicla uma vida e a transforma em algo novo.

Leia também | Documentário maranhense apresenta mulheres de São Luís que atuam como empreendedoras sociais

A economia criativa e solidária é um dos eixos de atuação do projeto Reciclando Vidas: possibilitar a essas mulheres novas formas de exercerem sua criatividade e trabalhar a autonomia em um contexto sustentável.

Além de ensiná-las a reciclarem o papel e, a partir desse trabalho, confeccionar vários produtos, outras temáticas são trabalhadas ao longo de cada etapa do projeto para que autonomia, no seu sentido mais amplo, seja promovida: financeira, emocional e de liberdade de escolha.

Elas nunca desistiram de nós”

“Eu gosto muito do projeto. Só não venho mesmo se estou doente. E mesmo quando estou doente, as meninas ligam pra gente e nos motivam, incentivam. Elas nunca desistiram de nós, são sempre pontuais aqui, todos os dias, quando a gente precisa, estão ao nosso lado ensinando. Às vezes, a gente está com estresse, agoniada da luta, aí viemos pra cá e aí a gente conversa, a gente se alegra… A gente pode aprender umas com as outras. Eu espero cada dia mais aprender e ser uma mulher poderosa. (Maria Nazaré, 47 anos).

Leia também | “Chega de Fiu Fiu”: Documentário discute o assédio contra mulheres em espaços públicos

Ao ouvir o relato de Maria Nazaré, compreendemos o quanto é importante o apoio e a motivação que vem de outras mulheres, que se mostram verdadeiramente preocupadas, interessadas e amorosas. Faz parte do andamento do projeto – e ouso dizer que em todo trabalho coletivo com mulheres – estabelecer o laço de sororidade e respeito pelas outras, que também fazem parte de nós.

“Só elas sabem o que passaram pra chegar aqui”

Entre as participantes, um rostinho nos chamou a atenção: Luana era a mais nova do grupo. Conversava com todos, era participativa e estava bem sorridente.

Uma menina cheia de sonhos, em meio a mulheres com tanta experiência de vida e com histórias tão distintas. Caminhos improváveis que se cruzaram no Reciclando Vidas, em busca de uma nova esperança, movidas pelo desejo de aprender e de compartilhar o conhecimento mútuo. 

Luana, 18 anos

“A sensação de estar com mulheres mais maduras que eu é ótima: elas já têm mais experiência, sabem o que passaram para chegar até aqui, algumas pararam de frequentar por causa dos maridos, problemas em casa…E, pra mim, é uma experiência nova, eu sou a mais nova, eu acabei de sair do mundo da escola, estudando… E agora tô vivendo coisas novas, aprendendo a fazer o papel e eu amei. É uma experiência boa. Quando a Nave trouxe o projeto pra Vila Rosinha, fiquei preocupada, porque eu moro longe… Mas por que aqui? Porque aqui as mulheres ficam mais trancadas em casa. Pra mim é um pouco difícil vir, mas, pra conquistar alguma coisa pro nosso futuro, tudo é difícil. Foi difícil a gente aprender a fazer o papel, os produtos, os cadernos, as sacolinhas… Mas conseguimos, porque a gente pode! E quero que outras mulheres vejam isso e queiram fazer também, é sempre bom aprender coisas novas, não desistir, continuar, porque o mercado de trabalho está aí e não são só os homens que têm que estar, as mulheres têm que seguir esse caminho.” (Luana Pereira, 18 anos)

Na fala de Luana, podemos ouvir o quanto muitas mulheres ainda encontram-se “presas” em casa por questões familiares, o que as impedem também de participar das atividades propostas pelo projeto. Participar do projeto passa a ser, então, uma forma de mostrar à comunidade e às outras mulheres que é possível, bom e saudável para todos. Além de ser uma maneira de construir uma nova realidade, a de uma mulher independente, que produz, ajuda na renda familiar, sem depender necessariamente deles.

“A visão de futuro é crescer. Me encontrar lá em cima e dizer que eu venci, como mulher me sentir feliz.”

“Estou gostando muito. Tem nos trazido ótimas oportunidades, de aprender coisas novas, diferentes, me tirou de casa, de ficar sentada em casa daquela vida monótona, me trouxe pra cá, pra outra visão de vida, pra mim, minha vida e pra nossa comunidade. Eu penso realmente em crescer, não só pra mim, mas também pra nossa comunidade. Passar pras futuras gerações esse valor: de aprender coisas novas. O Reciclando é uma coisa maravilhosa pra gente: estamos renovando tudo. Não é só usar e jogar fora, é fazer tudo novo. A visão de futuro é crescer. Me encontrar lá em cima e dizer que eu venci, como mulher me sentir feliz. A Nave voa e essas meninas são as pilotas! Elas trazem alegria de viver, oportunidade de crescer. Só trazem amor e alegria pra gente”. Nicelene Félix.

Leia também | Mulheres na Música – A resistência feminina no Samba

A fala de Nicilene traz o sentimento de gratidão pelo projeto realizado na comunidade. Muito além de ensinar a criar um produto com suas próprias mãos utilizando uma matéria prima manipulada por você mesmo, o Reciclando Vidas permite entrar em contato com outras temáticas que fazem as mulheres da Vila Rosinha ressignificarem outras áreas da vida com um suporte teórico e afetivo por meio das oficinas, palestras e, principalmente, da relação. 

Como a própria Rebeca Alexandre falou: “Para elas serem autônomas, elas têm que ter conhecimento. Essa é a verdadeira liberdade”.

Alguns produtos feitos pelas mulheres da Vila Rosinha durantes as oficinas:


Você conhece alguma iniciativa social realizada com mulheres na Região Metropolitana da Grande São Luís? Manda um e-mail para gente: sobreotatame@gmail.com

O Elas SobreOTatame quer espalhar seu trabalho!

administrator
Cidadania | Comportamento | Cultura. Criamos conteúdos e acreditamos que o palco de luta é a vida, o nosso tatame de aprendizados diários. #SobreOTatame

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
mais recentes
mais antigos Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários