Ringo Starr, Charlie Watts e suas levadas sensatas e musicais na história do rock

Os icônicos bateristas Charlie Watts e Ringo Starr (Arte: Arquivo Pessoal).

É engraçado reparar que as duas maiores bandas de rock da história – os Beatles e os Rolling Stones (ou seriam os Rolling Stones e os Beatles?) – possuem bateristas que à primeira vista não impressionam ninguém. À primeira vista, reitero.

Ringo Starr e Charlie Watts são frequentemente estigmatizados como ‘bateras’ que ‘nem fedem, nem cheiram’, como ‘bateras’ que são simples até demais – como se para ser minimamente valorizável o ‘batera’ tenha que distribuir 10 toneladas de fusas e semifusas ao longo do seu setup de bateria. Calúnia, claro. Calúnia tão antiga quanto a posição de fazer cocô.

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Não chego a dizer, no entanto, que obrigatoriamente ‘menos é mais’. Menos pode ser menos ainda, por exemplo. Tudo depende da música a qual o baterista terá de conduzir. E Charlie e Ringo (vou tratá-los pelo primeiro nome, ok?) sempre demonstraram sensibilidade para entender que a música de suas respectivas bandas pedia encarecidamente por menos.

Ringo Starr, ex-baterista dos Beatles (Foto: Arquivo).

Eu li, certa vez, na revista Batera & Percussão, na edição de novembro de 2003, o seguinte comentário em uma reportagem escrita por Regis Tadeu e Carlos Ezequiel:

“Antes de qualquer coisa, é preciso reafirmar por escrito que Ringo Starr foi um batera genial e que os Beatles não teriam o status de mito sem a sua presença – algo sempre dito por John, Paul e George”.

Bom, eu não sou Pai Gallo para mentalizar o que teria acontecido com os Beatles sem a presença de Ringo e nunca li nenhuma declaração do resto da banda enaltecendo-o… Mas creio que não, a condição de mito dos Beatles não dependeu necessariamente dele. Os Beatles são o que são hoje majoritariamente graças às composições e performances de Lennon, McCartney e Harrison (nesta sequência) e o crédito de Ringo Starr está em reconhecer que essas composições demandavam por uma bateria simples… Até mesmo porque isso era o máximo que ele poderia dar.

Ringo é declaradamente um baterista limitado. Limitado, mas muito bom dentro dos limites (com direito a algumas ‘surpresinhas’, como aquele singelo e criativo solo em The End, presente no álbum Abbey Road).

Ringo não sabia fazer viradas e levadas escalafobéticas e mesmo se soubesse jamais iria colocar isso na música dos Beatles (até mesmo porque, cá entre nós, Lennon e McCartney não iriam deixar). Ringo tinha honestidade e sinceridade para admitir até onde ia sua técnica e sua meta sempre foi trabalhar em equipe, entendendo e executando o que a música realmente precisava e dando o espaço devido aos outros músicos da banda.

Algumas palavras dele: “Nunca me liguei muito em bateristas, e nunca fiz solos. Eu odiava solos. Sempre quis ser o baterista com a banda, nunca a estrela do show. O solo mais longo que fiz teve 13 barras”.

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Sobre seu estilo de tocar, ele comenta: “Até hoje não consigo fazer um roll [uma virada] e sempre bato com a esquerda primeiro, enquanto a maioria dos bateristas usa a direita. Meu estilo pode parecer estranho, mas é meu. E não consigo me mover por todos os lados da bateria, não consigo, por exemplo, ir da caixa para o tom-tom superior, depois para o tom-tom do meio e, por fim, para o surdo. Mas consigo fazer o contrário. Todas essas coisas colaboram para o que as pessoas chamam de ‘fills engraçados’. Quando fui para os Estados Unidos, conheci pessoas como [Jim] Keltner e outros do mesmo calibre, que me diziam que estavam cansados de entrar num estúdio – porque todos pediam que eles tocassem como eu. Isso foi muito bom para o meu ego, pois significava que afinal eu não era tão tolo assim”.

Viram o que estou dizendo? Ouçam She said she said, presente no álbum Revolver, e saquem o quão poderosa é a musicalidade de Ringo e o quanto sua levada – algo entre o singelo e enredado – se encaixa prazerosamente na música.

E Charlie Watts? Bem, ele e Ringo possuem níveis técnicos mais ou menos similares, mas este último é levemente mais criativo que Charlie. Entretanto, Watts é indiscutivelmente mais elegante, mesmo com sua condução significativamente tensa.

Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones (Foto: Arquivo).

Tal elegância advém de sua forma de segurar as baquetas, a técnica traditional grip, que descende dos tempos de guerra do século XVIII, quando os percussionistas que tocavam as caixas (ou snare drums) em bandas marciais tinham que tocar em pé, juntamente com o instrumento pendurado no próprio corpo.

Tais músicos ainda tocam dessa mesma maneira e tal pegada sempre foi muito popular entre os bateristas de jazz, estilo musical que, por sinal, é o “primeiro amor de Charlie”, como explica o site Drummerworld. Sua escolha pelo traditional grip resulta, logicamente, disso (a pegada de Ringo, a propósito, é a matched grip, mais recente, comparada com a traditional, e mais comum entre os bateristas de rock).

Do Charles, eu aconselho vocês a ouvirem a levada que ele faz em Can’t You Hear Me Knocking?, música presente no álbum Sticky Fingers. Sintam a textura de suas ghost notes – aquelas notas tocadas de maneira mais sutil, produzidas pelo controle do rebote da baqueta na caixa. Tais ghost notes soam perfeitamente como se fossem um bombom Serenata de Amor se dissolvendo em sua boca após uma boa mordida.

Reparem também em como jocosamente Charles bate mais forte na caixa duas vezes após Mick Jagger fazer a pergunta que dá o título à música. Ringo apresenta da mesma forma, por sinal, um bom trabalho de ghost notes em She said she said. Ouçam ambas as músicas com fones de ouvido, para melhor apreciação.

Sobre seu estilo de tocar, Charlie comenta: “Nunca achei que o que eu faço seja excepcional. É basicamente para o que você está tocando, na verdade. Al Jackson foi, provavelmente, dez vezes mais simples do que eu, se você pode chamar o rock de simples, mas pra mim não foi. Ser capaz de tocar tão devagar quanto Al Jackson é quase impossível. Joe Morello que me perdoe, pois eu o adoro, mas ele não era capaz de fazer o que Al Jackson fazia”.

E comenta mais em um belo tom professoral: “Geralmente, quando as pessoas falam de bateristas, todos os grandes técnicos vêm à mente. Mas, como disse o Max [Roach], existe muita arte na simplicidade. Nada é pior do que ouvir um baterista tocando por todos os lados quando ele deveria estar fazendo apenas uma levada”.

Referências:

EZEQUIEL, Carlos, TADEU, Regis. 10 grandes viradas do rock. In Batera & Percussão, novembro de 2005, nº 75.

20 anos de MD: as grandes frases dos sábios da bateria. In Modern Drummer Brasil, julho de 1996.

Link para a página dedicada ao Charlie Watts no site Drummerworld: http://www.drummerworld.com/drummers/Charlie_Watts.html.

Caio D Carvalho é cientista social, mestre em Comunicação e Semiótica e acadêmico de jornalismo. Atua em São Luís como profissional da comunicação, tanto no sentido usual como naquele relativo ao uso de estratégias comunicacionais para ensinar (magistério). É redator e revisor do SobreOTatame.com, além de musicófilo, baterista, enxadrista afobado e apaixonado por narrativas ficcionais (ou “mundos possíveis”, principalmente os do cinema).

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