São Pedro não é Lollapalooza! A Casa das Minas não é show!

(Foto: Murilo Santos)

Por Joelma Santos, em colaboração ao SobreOTatame.com

Depois da última manhã de 29 de junho, ao expressar minhas impressões/opiniões/revolta em relação a alguns acontecimentos de mais um amanhecer entre a centenária Casa das Minas e a Capela de São Pedro, vi-me sendo adicionada, marcada, compartilhada e comentada no mundo das redes sociais. Uns a favor, outros “vestindo a carapuça” do contra, todos falando sobre os acontecimentos da tradicional festa de São Pedro, em São Luís, na qual os grupos de bumba-meu-boi amanhecem no largo da Capela se apresentando ao santo, pagando suas promessas e festejando em sua homenagem, até a saída da procissão marítima.

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Recebi, na tarde daquele mesmo 29, o convite de uma amiga da época do mestrado para escrever esse artigo. Entre gripe, cansaço, viagem, aulas e provas (maravilhosa rotina docente de fim de semestre), confesso que já estava preparando minha desistência. Porém, ao abrir o Instagram e ver os registros que o Murilo Santos fez da festa, em 1980; ao ver o rosto das pessoas na festa: mulheres e homens negros, sertanejos, pobres; ao lembrar do quanto essa festa, e as festas da religiosidade popular, em geral, já sofreram preconceito, do boi proibido de dançar no centro; e, principalmente, do quanto a cultura popular é apropriada, esvaziada de sentido, destruída, e do mal que isso causa às relações sociais e comunidades tradicionais, não pude me furtar de escrever.

Os fatos

Na véspera do dia de São Pedro, a Casa das Minas Jêje (Querebentã de Zomadonu), terreiro mais antigo do Maranhão, fundado por africanos na década de 1840 e vizinho da Capela de São Pedro, também é visitado por diversos grupos de bumba-meu-boi. Estes se apresentam na frente da Casa, entram, pedem bençãos aos ancestrais, pagam promessas e obrigações, tomam uma sopa pra recuperar as energias, e vão até o amanhecer.

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A nós, simples apreciadores, que não somos da Casa, nem dos grupos, é permitido participar dessa festa que é comemoração, tradição e fé. E ano a ano, centenas de pessoas amanhecem ali, na frente da Casa das Minas, sob as bênçãos dos voduns, comemorando, encontrando os amigos, assistindo os bois. Mas, esse ano, o boi de Leonardo não brincou.

(Foto: Murilo Santos)

O boi de Leonardo, sotaque de Zabumba, do também centenário bairro da Liberdade (maior conglomerado urbano de população negra de São Luís), não se apresentou na frente da Casa das Minas; ou melhor, foi impossibilitado de se apresentar, e só passou batucando pela frente do Querebentã de Zomadonu.

Nos quase 10 anos que amanheço o dia de São Pedro na Casa das Minas, nunca tinha presenciado coisa parecida. O motivo? A galera que foi acompanhar a festa esse ano, muitos jovens, universitários, frequentadores da cena alternativa da cidade, compradores de lojas da moda, lacrador@s de redes sociais, simplesmente não pararam de conversar, nem saíram do meio da rua para o boi passar. Mesmo com os insistentes pedidos do amo do boi.  

A certa altura da madrugada, a Casa das Minas foi fechada para evitar a entrada de pessoas que estavam zanzando no quintal sem ser convidados, de bêbados, de gente que estava atrapalhando o cumprimento das obrigações dos bois. A Casa das Minas foi fechada em uma noite na qual, tradicionalmente, ela fica aberta acolhendo brincantes e expectadores dos bois.

Cultura vs consumo

(Foto: Jonas Sakamoto / Equipe SobreOTatame.com)

Nunca tinha visto tanta falta de educação e desrespeito com os grupos de bumba-meu-boi, com a Casa das Minas e com a Festa de São Pedro, quanto nesse episódio e nessa noite. “Ah, mas tinha muita gente e eu não consegui dar espaço pro boi passar. Ia perder meu lugar”. “Ah, mas foi falta de organização do pessoal, tinha de colocar um alambrado ali”. Oi? O seu lugar? Seu lugar aonde? Seu lugar em quê? Alambrado???!!!  É século XXI e o discurso de higienização dos lugares e costumes, lá do século XIX, ainda está por aí? Meu anjo, São Pedro não é Lollapalooza! A Casa das Minas não é show!

Você não é a/o consumidora/o que precisa ser agradado, comprador/a de um ingresso cadeira ouro para um show. Eu sei que vocês não devem estar acostumados, mas ali é cultura popular, feita pelo povo e para o povo! O protagonismo é da mesma gente pobre, negra e sertaneja dos registros do Murilo Santos, do bairro da Liberdade; e não da patricinha hippie do Renascença que adora cultura “POPular”.

Podia falar ainda do colega “dexcolado” fazendo quadradinho de oito na cara do boi, enquanto o miolo mostrava o que lhe era mais caro: o baiado que ensaiou por meses, o couro bordado por um ano com miçangas e orações, na frente da Igreja de Santo Antônio. Ou dos bois que passaram em silêncio para a Capela de São Pedro, porque os carros de malas abertas, som caríssimos e volumes nas alturas, tocando funk carioca, abafavam as matracas, pandeiros, pandeirões, e zabumbas, que homens e mulheres vindos das periferias de São Luís e de diversos interiores do Maranhão, carregando suas várias décadas de vida, e sua devoção à brincadeira e ao santo, em vão tentavam tocar para pessoas que lá estavam, mas não participavam da mesma festa. Ou ainda das várias pessoas que não pagaram suas promessas ou acenderam suas velas porque a capela estava muito cheia, e por não quererem ser tratados como animais em um zoológico, alvo das centenas de celulares apontados para qualquer um que ousasse se ajoelhar aos pés do santo.

Reflexão

(Foto: Murilo Santos).

Tudo isso só me lembrou aquela clássica pergunta de aulas de antropologia: “Aonde mora o seu preconceito?”. São Pedro é uma festa tradicional da religiosidade popular, e a Casa das Minas é solo sagrado das religiões de matriz africana. Por que não houve o mínimo de respeito ou admiração, ali, pelos brincantes, brincadeiras e pela Casa? Por que é coisa de povo preto, pobre, da Liberdade, da Madre Deus, da baixada, dos lugares desimportantes da cidade e do Estado? Se não, então por quê?

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Naquele casamento chique em bairro nobre você se comportaria assim, ficaria no meio do corredor da Igreja, atrapalhando a noiva entrar, para não perder o seu lugar? Continuaria conversando de costas para o altar, atrapalhando a cerimônia, mesmo depois de ter a atenção chamada pelo padre ou pastor?

Então, galera, se para vocês, dexcolad@s, funkeir@s, lacrador@s em geral, as festas de São João (Antônio, João, Pedro e Marçal) são pura curtição, de boa! Vá curtir, brincar, beber, sarrar, mas lembrem que a festa não é feita por ou para vocês.

Não desrespeitem as pessoas para quem o São Pedro na Casa das Minas e na Capela é tradição, herança passada de pai para filho, obrigação com o santo e os voduns, pagamento da promessa e renovação da fé. Lá, para muitos, é o momento de contato com o sagrado, aonde o “Zé” deixa de ser um ninguém do cotidiano para ser o miolo do boi de Seu Légua, o índio guerreiro de Santa Fé, o tocador de costa de mão com seu pandeiro manchado de sangue. E para aqueles que me procuraram para dizer que nem todos estavam ali com um comportamento desrespeitoso, consumista e predatório da cultura popular: que bom, mas não tem biscoito. Ir, encher a Capela, tirar foto, lacrar, não é fortalecer a cultura ou a festa. Aprendam a ver, ouvir e saber pisar nos lugares (sagrados e profanos) nos quais estão chegando. Fortaleçam a cultura apreciando, valorizando e respeitando as pessoas para quem essa cultura é o próprio sentido da vida.

(Foto: Murilo Santos)

Joelma Santos da Silva é professora do IFMA – Campus Pinheiro, historiadora e doutora em Ciências Sociais.


Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento. A decisão de publicarmos o texto da historiadora, mestre e doutora em Ciências Sociais, Joelma Santos, é devido ao conhecimento crítico e estudado por ela e sua vivência na cultura popular do estado do Maranhão.

Esperamos que o material possa levar informações acerca da profundidade do rito religioso que é marcado pela madrugada do dia 29 de junho tanto na Casa das Minas, quanto no Largo de São Pedro, em São Luís (MA).

Obs: as fotos utilizadas neste artigo (com exceção da imagem feita pelo repórter Jonas Sakamoto) foram autorizadas e cedidas pelo autor delas, o cineasta e fotógrafo Murilo Santos.

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