Saúde mental da mulher: por que a gente quer falar disso?

Ilustração de Roeqiya Fris.

Estamos chegando ao nosso terceiro e último bloco de discussão deste primeiro ano do projeto Elas SobreOTatame. Como tem sido pra vocês?

Pra nós, sendo bem sincera, está sendo trabalhoso e desafiador! A vontade de conversar sobre tudo e um pouco mais é muito grande, inclusive, cada decisão tomada nesse projeto é fruto de muita conversa entre nós da equipe; conversamos sobre o que estamos sentindo, sobre as nossas impressões acerca do que está acontecendo ao nosso redor e também ponderamos sobre o que ouvimos no nosso cotidiano e nos encontros que já realizamos com vocês.

Foi assim que decidimos, juntas e juntos, que era preciso falar sobre Saúde Mental da Mulher. Mas por quê?

O tema “saúde mental” não é restrito a nós, mulheres. Não é preciso ler tantos artigos acadêmicos, ser psicólogo, psiquiatra, religioso e etc., pra perceber que: todo mundo está meio adoecido, não é mesmo? Uns mais outros menos. Homens e mulheres.

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Até quem não está “formalmente” doente (com um diagnóstico bem definido) precisa cuidar da sua saúde mental; no entanto, é inegável como nossos tempos tem nos tornado pessoas, independente da faixa etária, cada vez mais propensas a desenvolver desordens mentais de leves a severas. Mas então por que decidimos restringir o tema à saúde mental da mulher se todo mundo está adoecendo?

Primeiro, quero ser bem honesta com vocês: este projeto tem a intenção de que homens também participem de nossas discussões. Acreditamos que o diálogo entre homens e mulheres é uma poderosa ferramenta educativa e, portanto, transformadora de realidades. Mas pra gente conseguir conversar com nossos companheiros, amigos e parentes, primeiro precisamos cuidar de nós e nos entender, até para evitar cair na armadilha de assumirmos uma posição “maternal” ou “professoral”. Em caso de emergência, coloque a máscara primeiro em você e aí sim, você vai poder ajudar quem está ao seu lado. Não é assim que funciona?

Então, vamos lá, vamos conversar sobre saúde mental da mulher. 🙂


Por que pensar gênero no âmbito da saúde?

Ilustração de Roeqiya Fris

No âmbito da saúde, não realizar um recorte de gênero para qualquer questão apresentada é minimamente insensato, afinal, há diferenças gritantes nas realidades de homens e mulheres. O sexismo, uma das características mais fortes da nossa sociedade, impõe a homens e mulheres padrões muitas vezes inalcançáveis e nada saudáveis.

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Não se trata apenas de diferenciar as pessoas pelo seu sexo biológico, quando fazemos um recorte de gênero, falamos de como esta diferença se traduz na realidade a partir de noções de desigualdades profundamente enraizadas. Isto também vale para a saúde mental.

Traços culturais: um problema que nem sempre identificamos

Os traços culturais socialmente aceitos sobre masculinidade e feminilidade (o que chamamos de sexismo) têm um impacto grande na psique. A literatura aponta que homens são os mais propensos a terem transtornos de conduta e problemas com álcool e drogas, por exemplo, e não há dúvida que isso tem a ver com tudo o que crescemos ouvindo e aprendendo sobre “ser homem”, sobre agir e reagir “como homens” diante de quaisquer situações.

Outro dado interessante é que, apesar de mulheres serem maioria em diagnósticos de transtornos mentais, os homens cometem mais suicídio. A explicação é também uma análise que envolve gênero: homens, em geral, têm mais dificuldades de conversarem sobre assuntos mais pessoais e que possam demonstrar fraqueza; por isso, os números de suicídios entre eles é mais alto, já que buscam menos ajuda.

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Além disso, há muita pressão social relacionadas a valores de normalidade que geralmente estão ligados àquilo que é considerado “masculino” (noções de força e inteligência, por exemplo).

Sabemos disso e de maneira nenhuma desconsideramos este fato e os danos à saúde mental dos homens, porém, para as mulheres, esse impacto ainda é maior, pois nascer mulher já é difícil. Já nascemos sob o jugo da “fragilidade”, da “inferioridade” e da “falta”, é como afirmar que, em geral, já começamos abaixo do primeiro degrau da escada por algo que nem sequer escolhemos: o nosso sexo biológico. E daí pra frente, então, a coisa tende só a complicar mais ainda.

Mas, ainda falando de números, por que quando falamos de saúde mental, eles sempre são mais altos para as mulheres na maioria das classificações de transtornos? Tem alguma coisa aí.

“Toda mulher é meio doida”

Com certeza você já ouviu alguma coisa assim. Esse tipo de pensamento tem raízes bem profundas no imaginário popular e foi largamente difundido durante o século XIX, onde simplesmente ser mulher já lhe conferia a possibilidade de adoecimento por conta de aspectos biológicos.

Por muito tempo, a loucura foi feminizada. A história da psiquiatria mostra que havia a sugestão de uma relação natural entre mulheres e doença mental (para aí para pensar em Freud e suas mulheres histéricas e neurastênicas. Não há um recorte de gênero nisso?).

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Por que continuamos com a tendência a acreditar que para toda mulher é inata a possibilidade de um transtorno psiquiátrico? E por que, mesmo compreendendo esse viés de gênero, é fato que adoecemos mais?

“Um adjetivo bom pra vida é ‘louca’, porque pra viver não pode bater bem” (Vidaloca – Tuyo)

Continuamos adoecendo porque o mundo ainda não nos recebe como deveria. Continuamos adoecendo porque vivemos em uma sociedade desigual em todos os sentidos. E se somos a maioria da população mundial e mesmo assim somos as mais vulneráveis, então a sociedade precisa mudar.

De forma resumida, as experiências do cotidiano de mulheres que podem causar danos à saúde mental giram em torno do seguinte tripé: maternidade, sexualidade e trabalho. Dentro deste tripé, podemos identificar com mais facilidade diversos fatores que repercutem negativamente na saúde mental das mulheres, alguns até bem já conhecidos por nós:

  • Múltiplos papéis: mãe, trabalhadora – dentro e fora de casa – e esposa;
  • Status marital: a qualidade desta relação tem influência direta na saúde mental da mulher;
  • Número de filhos – quanto mais, mais probabilidade de adoecimento;
  • Violência física e sexual;
  • Analfabetismo;
  • Casamentos arranjados (em outros países a prática ainda é bem comum);
  • Não autorização social de outra forma de expressar a sexualidade que não seja a heteronormativa.

Não à toa, a literatura indica que as mulheres são as que mais possuem diagnósticos dos conhecidos Transtornos Mentais Comuns*, sendo a violência doméstica uma das causas de maior impacto.

*Transtornos Mentais Comuns é um termo utilizado para uma situação de saúde que não se encaixa nos critérios formais de Depressão e/ou Ansiedade, mas que mesmo assim apresenta sintomas ansiosos e depressivos: como irritabilidade, fadiga, esquecimento, sintomatização, dores, falta de concentração e etc. Sintomas que, de maneira geral, reduzem a qualidade de vida das pessoas sobremaneira, ainda que não tenham plenamente o diagnóstico de Depressão ou Ansiedade.

Mulheres entre 15 e 24 anos são as que mais perdem anos de vida saudáveis (DALY) devido a esses transtornos, além disso, a previsão é de que, até 2020, a depressão seja o principal transtorno a atingir mulheres em idade reprodutiva de países em desenvolvimento (onde, teoricamente, nós brasileiras estamos inseridas).

Porém, a literatura também aponta que transtornos de humor e de ansiedade são mais apresentados por mulheres e isso independe do país e da situação econômica. Estamos todas juntas nesse barco!

Gênero, classe, raça: não tem como separar

Ilustração de Roeqiya Fris

Além da questão “ser mulher”, outros fatores são transversais à temática, como classe e raça. Esses dois parâmetros também estão presentes quando se fala de saúde mental, afinal, mulheres menos escolarizadas, negras e pobres, são mais vulneráveis socialmente e, portanto, têm mais propensão a desenvolverem transtornos mentais comuns.

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Vale lembrar que um relatório realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), há alguns anos, sobre as características da População Mundial, demonstrou que mulheres viviam mais em situação de pobreza do que homens e que elas também trabalhavam muito mais horas, incluindo as horas que sequer são remuneradas, o que diminui o seu acesso aos bens sociais, à educação e a serviços de saúde.

E, só pra enfatizar, lembre-se que a educação é um dos maiores fatores de proteção que existem para minorias.

Segundo a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher:

“[…] as mulheres ganham menos, estão concentradas em profissões mais desvalorizadas, têm menor acesso aos espaços de decisão no mundo político e econômico, sofrem mais violência (doméstica, física, sexual e emocional), vivem dupla e tripla jornada de trabalho e são as mais penalizadas com o sucateamento de serviços e políticas sociais, dentre outros problemas. Outros aspectos agravam a situação de desigualdade das mulheres na sociedade: classe social, raça, etnia, idade e orientação sexual, situações que limitam o desenvolvimento e comprometem a saúde mental de milhões de mulheres.” (p. 45)

Esse panorama mostra que falar da saúde mental da mulher é necessário. Queremos que todo mundo fique bem, homens e mulheres, mas precisamos cuidar de nós primeiro.

Ao longo desta última etapa do nosso projeto, produziremos conteúdo sobre: Ansiedade e Depressão, Transtornos de Humor, Transtornos de Imagem, Prevenção ao Suicídio e Autocuidado.

Participem! Comentem, divulguem, conversem sobre com as amigas, os amigos, os parentes, sua mãe. E se preparem para nosso último encontro, que será sobre esse tema.

Sabemos que nossa ação é um gotinha no oceano, mas o que é o oceano sem suas gotinhas, não é mesmo? Com passos de bebê, juntas, de mãos dadas, a gente chega lá.


Referências:

Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher
Triste, louca ou má: a saúde mental da mulher pela perspectiva de gênero
Gênero e saúde mental: algumas interfaces
Transtorno mental comum em mulheres adultas: identificando os segmentos mais vulneráveis


Iniciativa Elas SobreOTatame

Este texto faz parte do Elas SobreOTatame: uma iniciativa do SobreOTatame que aborda temas do universo feminino ao longo do ano, em textos, podcasts, encontros presenciais e convidados especiais. Tudo isso sob o comando da mulherada do site.

No segundo bloco, ocorrido entre abril e junho, a temática foi sobre Maternidade:

Cada bloco dura três meses, com uma temática escolhida. O primeiro foi sobre Prazer Feminino e Autoconhecimento. Durante os meses de janeiro a março, vários materiais sobre esta temática foram publicados:

Steffi de Castro é psicóloga. Atua em São Luís como designer instrucional e escritora. É redatora no SobreOTatame, escreve e estuda sobre música, feminismo e comportamento. É estudante de tarô, dançarina amadora, podcaster, adora ASMR e a vida offline.

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