“…sempre lembrarei desta noite” (Foto: Reprodução/Netflix).
Secreto e Proibido (2020) é um documentário LGBTQ+ produzido pela Netflix, dirigido por Chris Bolan e estreado no último mês de abril.
Confesso que não me senti à vontade com essa disposição na qual o documentário se configura, por se tratar de um homem dirigindo um documentário que conta a história de duas mulheres lésbicas. Apesar disso, consegui ser arrebatada pelo amor, pela nostalgia e por todas as emoções que essa história nos desperta.
O documentário fala sobre a história de duas mulheres que se conheceram por volta dos anos 1940, se apaixonaram e por conta das convenções sociais, viveram esse amor em segredo por mais de 65 anos. Por meio de cartas, fotografias, vídeos e claro, o depoimento das próprias personagens, somos transportados pelo tempo, para as diversas fases desta história, como a vida que vai se fazendo.
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Bom, antes de abrir aqui meu coração, preciso em primeiro momento, fazer um breve resumo do filme (sem spoilers, prometo). Já idosas e com alguns problemas de saúde, Terry Donaheu, uma jogadora canadense de beisebol dos anos 40, e a sua companheira, Pat Henschel, abrem as suas vidas a fim de nos contar a história de amor que viveram, e que por muito tempo, foi escondida de todos.
Até um determinado momento, elas decidem contar para toda a família sobre a relação amorosa que existe entre as duas. Paralelo a isso, o casal vive o terrível dilema de ter que deixar a sua casa e passar a viver em uma casa de repouso, já que as duas não possuem mais condições físicas para viverem sozinhas, e por conta das fragilidades trazidas pela velhice, necessitam de cuidados especiais.
Fica muito evidente que este é um processo extremamente difícil para as duas, principalmente para Pat, que resiste durante um tempo e se mantém firme na decisão de continuar na mesma casa, em que viveram por mais de 20 anos.
“Parece que eu vivia uma mentira”
Essa é uma das frases de Terry que mais me marcou, mas não foi só o que ela disse, é toda a expressão dela. Ver uma senhora de quase 80 anos sentir que sua vida é uma mentira não é algo fácil de diluir porque assim como ela, eu estive imersa neste mesmo sentimento.
Tenho certeza que todo LGBTQI+, que passou por este processo de se descobrir, de se aceitar e ter que se esconder, por medo de ser rejeitado por sua própria família, já sentiu estar vivendo uma mentira. Saber quem você é e ter que fingir ser outra coisa, é como criar um teatro dentro da sua própria vida, você acaba tendo que encenar uma heterossexualidade que não existe dentro de você. Foi assim comigo, antes de me assumir para a minha família, eu sentia que a minha vida era uma fraude. Isso me angustiava demais, o medo, a insegurança, a sensação de que eu poderia perder todo mundo.
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Quando eu comecei o processo de me assumir, sabia que precisava estar pronta para as pessoas que não me aceitariam, e infelizmente, compreender que elas não fariam mais parte da minha jornada. Acho que é muito importante isso, você ter consciência de dar amor a quem, em via dupla, te devolve amor. Você não precisa correr atrás de quem não te aceita como você é.
Eu comecei contando para os amigos. Tiveram aqueles que ficaram felizes por eu estar me assumindo, mas também houve aquela amizade que me rejeitou. Por mais doloroso que fosse, eu já sabia que tudo aquilo fazia parte e só deixei partir quem estava na porta de saída. Depois, foram os amigos de infância, para enfim chegar na minha família. Comecei pelas minhas irmãs, e recentemente, contei para os meus pais. Meus pais sabiam, mas insistiam em fingir que nada estava acontecendo. Então, chamei os dois para uma conversa (por telefone por conta da pandemia) e disse: “parem de fingir que vocês não sabem que eu gosto de mulher”. Tudo certo, a gente começou a construir algo novo e eu estou nessa fase do processo.
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Se você é uma pessoa heteronormativa e já passou por essa situação de ter umx amigx que está saindo do armário, saiba que tudo que essa pessoa precisa é de afeto. Se você é um familiar, mãe, pai, irmã/irmão, saiba que antes de chegar até aqui, nesta fase da vida, a pessoa que está se assumindo para você agora, já vivenciou todas as guerras internas e os processos de autoaceitação. Ela já se questionou se aquilo não era só uma fase, percebeu que não era, já pensou que talvez fosse pro inferno, já deixou de ver Deus como um acusador também, ou nem se importa mais com isso. Ou que aquilo estivesse muito errado. O que eu quero dizer é: elx já tem toda a certeza e por isso está te contando.
Este documentário veio em boa hora, aqueceu meu coração e me deixou uma lição importantíssima: eu tenho uma família que me aceita, sou privilegiada por ter isso.
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Terry chegou na velhice com a sua companheira, tendo que esconder de todos algo tão lindo como o amor que uma sentia pela outra. Um amor intenso que resistiu às hostilidades do preconceito, e que mesmo depois de 65 anos, ainda estava ali, vívido em todas as suas partes. Ser gay nos anos 1940 não era apenas um tabu, mas era crime e isso fica muito evidente no filme.
E o motivo para que essa relação estivesse tanto tempo assim nas sombras, parte do princípio de que ela começou em um tempo de dureza. As circunstâncias mudaram e elas já estavam tão acostumadas naquela vida, que simplesmente permitiram que as outras gerações as vissem apenas como amigas.
“Parece que elas têm uma segunda família”
Sim, não só parece, mas é uma segunda família. As relações que construímos com as pessoas que compreendem a nossa luta, está para além de uma amizade. É algo que eu costumo falar e me referir como uma rede de apoio. Ser aceito é muito bom, poder viver sem medo, é ser livre.
E a relação de amizade que acabamos construindo com as pessoas que são LGBT’s, é uma relação familiar, de identificação. É um espaço de acolhimento importantíssimo, que nos ajuda a lidar com as situações, que geralmente enfrentamos, e são comuns a quem pertence ao grupo.
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Infelizmente, vivenciamos situações muito parecidas, como preconceito, desafeto, rejeição, e são estas pessoas que nos fortalecem com diálogo, troca de experiência, ombro e abrigo.
“Serás sempre a minha garota”
Fiquei me perguntando que sentimento deve ser esse, como deve ser sentir algo assim? Olhar para o lado e ter ali aquela mulher que você amou a vida toda, que você ainda ama. Segurar a mão dela, apalpar as linhas que o tempo deixou e ter o seu coração preenchido pelo sentimento que mora ali, naquele toque de pele, naqueles olhos que você reconhece de outros tempos. Amor, amor que representa luta, resistência e permanência. Não é porque é secreto que ele não exista. Nem porque foi proibido que ele deixou de existir.
Prova disso é a história que Terry e Pat nos conta, de como foi construir uma relação, viver todas as fases dela e envelhecer ao lado de quem diziam que você não poderia amar. “Serás sempre a minha garota”, diz Paty e Terry quando ela a visita no hospital e quanta beleza há nesta cena, queridos leitores. Duas mulheres idosas, fragilizadas pela doença, dizendo da sua forma o quanto se amam. Ow! É exatamente neste momento que eu queria que San Junipero fosse real (para quem não pegou a referência, é o quarto episódio da terceira temporada de Black Mirror).
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Por fim, quero deixar aqui a minha indignação por vocês que ainda não assistiram ao documentário. Brinks! Falando sério, deixo aqui a minha indicação de filme documentário para você assistir com a sua família.
É uma boa forma de mostrar para os seus familiares que LGBT’s sempre existiram, mulheres sempre amaram mulheres neste mundo fundo, homens sempre amaram homens, não tem nada de coisa do século XXI. Vai logo lá fazer a pipoca e não esqueça de que é super importante abrir um diálogo quando o filme acabar: a conversa é a base de tudo.
Diga não a homofobia! Fique em casa se puder.
Abraços e beijos, até o próximo texto!