Sex Education poderia ser só mais uma série adolescente, com um excelente visual oitentista, estética perfeita, ótima e diversa trilha sonora e um roteiro legal. Poderia, mas vai além.
Uma série que consegue tratar com tanta naturalidade, e sem nenhum tabu, sobre assuntos relacionados a gênero e sexualidade, aborto, relações parentais, força entre mulheres e os conflitos naturais que assombram a adolescência, merece muita atenção.
Se foi elogiada pelos oito episódios da primeira temporada, com o recente lançamento da segunda, Sex Education foi aclamadíssima (sem exageros), e com todo merecimento.
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Criada por Laurie Nunn, a série é uma comédia dramática que acompanha o desenrolar da adolescência do desastrado Otis Milburn (Asa Butterfield), filho de uma terapeuta sexual vivida pela maravilhosa Gillian Anderson.
Butterfield deu vida a um Otis reprimido e cheio de tabus com o próprio corpo, ainda virgem, cheio de traumas e sem conseguir se masturbar; ele entende a teoria das coisas, sendo filho de quem é. Mas, seu corpo não corresponde aos anseios da adolescência.
É no encontro com a inteligente, desinibida e excluída Maeve (Emma Mackey), e no surgimento de uma clínica terapêutica clandestina às avessas, que Otis começa a dar conselhos relacionadas a sexualidade dos seus colegas e a encontrar o caminho para o próprio desejo.
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Otis, Eric (Ncuti Gatwa) e Maeve formam um trio de protagonistas improvável e impecáveis. A série conta ainda com um elenco diverso, que faz toda a diferença no sucesso, e nos aproxima ainda mais de cada personagem (vou falar sobre cada num próximo material).
A verdade é que maratonei as duas temporadas e, definitivamente, estou dentro do grupo entusiasta de fãs; acompanhar as epifanias da série faz valer cada hora de maratona, mesmo sendo uma série adolescente, ela foge do esquema tradicional.
Sexo sem tabus
A adolescência é um território de erros e acertos, e tudo aflora com muita intensidade, desejos, amores e sofrimentos também. Quando Otis começa atender os colegas no seu nada tradicional consultório, os episódios ilustram assuntos que vão desde a dificuldade em ter um orgasmo, até o tabu da masturbação feminina.
É nesse fio de assuntos complexos tratados de maneira palpável que a conexão acontece. É difícil não se identificar com pelo menos uma das situações ilustradas. A série vai se tornando necessária para um público que vive em conflito com temas que são pouco discutidos.
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Um das personagens que mais me cativou, foi a Lily (Tanya Reinolds), ela escreve contos extraordinários e nutre o desejo de transar pela primeira vez, sem ligar a ideia a um relacionamento afetivo.
É o sexo pelo sexo, sem banalização, só o desejo puro e simples. Esse é um território tão dominado pelo masculino que, trazer uma mulher como protagonista na temática, desmistifica a ideia do sexo ligado ao amor romântico tão atrelada ao feminino. Tudo isso é feito de um jeito leve e divertido.
Talvez se existisse de fato uma educação sexual na vida de jovens e adolescentes, teríamos adultos menos reprimidos e com dificuldades em se relacionar.
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Não falo apenas da educação formal, na escola, mas de uma educação menos repressora por parte dos pais e cuidadores, que tratam o assunto como um grande tabu, como se deixando de falar, os adolescentes fossem realmente deixar de experimentar (só no fantástico mundo de Damares).
A série Sex Education é exemplar ao tratar o sexo como algo natural, que gera conflitos e inseguranças, que nem sempre é prazeroso, mas que deve ser falado. Falar sobre a coisa em si, retira dela o status de tabu.
Representatividade de verdade
Séries adolescentes em geral apresentavam um padrão muito específico, jovens brancos e héteros, felizmente temos visto maior representatividade nas produções mais recentes.
Sex Education deu baile nesse sentido, o atleta queridinho é um menino negro, filho de um casal de lésbicas; têm um cadeirante que quebra os estereótipos de bonzinho e coitadinho; uma adolescente assexual; Maeve, vive um eterno conflito sobre abandono materno e por se sentir inferior aos amigos de classe média. Boa parte do elenco foge do tradicional padrão americano.
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Nos quesitos gênero, classe e raça, os roteiristas não erraram a mão, é como deveria ser, as intersecções vão se apresentando e os conflitos surgindo à medida que vivências diferentes se entrecruzam. A séria vai te ensinando sobre empatia, sobre conhecer o outro, sobre se permitir mudar.
A relação entre Otis e Eric é linda
Definitivamente esse é um dos maiores acertos da série. Eric é um adolescente negro, religioso e assumidamente gay que está descobrindo seu caminho como Drag Queen; Otis é uma garoto hétero, branco, passando por conflitos e revivendo traumas. Tudo na relação de amizade entre os dois é tratado do jeito mais natural possível.
Em nenhum momento Otis questiona a sexualidade do amigo – na verdade, ele abraça tudo que é simbólico para o Eric. Mesmo as omissões que podem existir numa amizade, porque sujeitos diferentes, têm demandas diferentes (e nem sempre sabem como compartilhar), não são tratadas como algo extraordinário, são só dois adolescentes vivenciando os conflitos da fase.
Pensando bem, a amizade entre Otis e Eric têm o formato que todas as relações deveriam ter, aceitação do que é particular do outro, sem impor mudanças, acolhimento, bons momentos juntos e amor. Fiquei querendo ser amiga deles, não minto, só pra poder ouvir o Eric soltando a melhor gargalhada do mundo.
A Mãe do Otis é o nosso Guru do Sexo
Jean, a mãe do Otis e terapeuta sexual, é a fada sensata dos conselhos. Faz uso da sua liberdade sexual e afetiva. Ela não reprime o Otis, tenta sempre o diálogo aberto. Mas, na ânsia de vê-lo torna-se sujeito, acaba por violar o espaço do filho, muitas vezes deixando-o constrangido, uma mãe clássica, só que liberal.
Essa é uma boa lição para os pais, conversem sobre tudo com seus filhos. Deixem que eles conheçam vocês, não uma imagem beatificada de pais que não falham. Na primeira temporada, Otis é ciente de que sua mãe não está aberta para uma relação afetiva, mas que vive sua sexualidade de jeito mais libertador possível, e ele aceita isso.
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Jean é uma personagem completa, na segunda temporada temos acesso aos seus anseios, dúvidas e incertezas. Sagazmente a série humaniza a mulher que têm medo de se envolver afetivamente, de baixar suas guardas, de abandonar seu funcional estilo de vida.
A conexão com ela é instantânea.
Decisões pedem amadurecimento
Se tem uma coisa que a série consegue fazer o espectador refletir, é sobre o processo de amadurecimento dos personagens. Como decisões complexas requerem uma dose extra de coragem. Cada personagem possui uma particularidade, um conflito pra chamar de seu, e no decorrer da série, essas marcações levam ao amadurecimento.
A série de Laurie Nunn é um presente, não apenas por trabalhar temáticas que são relevantes e tratadas como tabu em pleno 2020. Mas, principalmente, por trazer essas questões com naturalidade, humor e provocação.
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Sex Education demonstra o real dessa fase de transição chamada adolescência, não dá pra passar ileso por ela, mas com orientação, companheirismo e afeto, o fardo se torna mais leve, e a vida adulta menos traumática.
Li em algum lugar que Sex Education é a transa perfeita, com direito a tesão, preliminares, cadência e clímax. Deixo aqui minha completa concordância.
Apenas um acréscimo: a série Sex Education foi oficialmente confirmada para uma terceira temporada, pela Netflix. Segue abaixo a confirmação oficial da plataforma: