Silvia Federici em conversa durante sua passagem por São Luís, Maranhão (Foto: Caio D Carvalho / Equipe SobreOTatame.com).
Por Steffi de Castro e Caio D Carvalho
As ideias de “feminilidade” e de “masculinidade” não devem (ou ao menos não deveriam) ser tratadas ingenuamente, como que dadas, alienadas de um jogo de “naturalização” ou “ocultamento” a sabotar qualquer ímpeto ou sensibilidade crítica à conjuntura socioeconômica em que vivemos.
Tal jogo não é fácil – apesar de ainda ser apenas a ponta do iceberg segundo várias tradições de pensamento crítico (não raro sempre comprometidas com a luta militante). É o caso da linha de pensamento de Silvia Federici, escritora, professora e ativista feminista ítalo-estadunidense que, desde a década de 1970, denuncia aquilo que, segundo ela, é a base desta estrutura: a domesticação do corpo feminino, chave de explicação para a submissão feminina, crucial para o desenvolvimento do capitalismo – ou, melhor dizendo, crucial para a lógica de reprodução da força de trabalho. Uma lógica a submeter mulheres à exploração doméstica, a um trabalho não remunerado e invisibilizado (ou naturalizado) como sendo “atos de amor”.
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Marco no pensamento sobre o feminismo – tal como Simone de Beauvoir, Angela Davis e Bell Hooks –, Silvia Federici está em turnê pelo Brasil com o lançamento de seu novo livro: “O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista”, a somar forças com outros livros importantes de sua trajetória, como “Calibã e a Bruxa”, de 2004 (cuja edição brasileira foi lançada em 2017, pela editora Elefante) e “Mulheres e a Caça às Bruxas”, de 2018 (cuja edição brasileira foi lançada em 2019, pela editora Boitempo).
Na última quinta-feira (10), como parte da programação de sua turnê, a ativista esteve em São Luís (MA) e concedeu uma coletiva de imprensa. Além de falar a respeito de seu novo livro, Federici teceu vários comentários sobre temas pertinentes à sua obra e luta. Abaixo, um pouco do que rolou nesta coletiva que o SoT teve o prazer de participar:
O livro “O Ponto Zero da Revolução”:
[Silvia Federici]: “[Este livro releva] 40 anos de meu percurso feminista… Mas quando digo ‘meu percurso’ não intento privatizar ou individualizar minha experiência, pois o que tem nesse livro é fruto de uma grande elaboração com outras mulheres. Então, quero repetir: nada sai de uma cabeça de uma só pessoa. Eu aprendi isso nesse percurso. Este livro, então, representa experiências, debates, reflexões, análises de 40 anos junto a mulheres nos Estados Unidos, Europa e, também, da África.
“O livro trabalha uma perspectiva que desenvolvi com minhas companheiras desde os anos 70 e que aborda o capitalismo do ponto de vista da reprodução social – o que hoje chamamos de ‘reprodução social’, claro –, que é o que chamo de ‘reprodução da força de trabalho’ ou ‘trabalho reprodutivo’. O livro está dividido em três partes e cada uma dessas sessões se ocupa de uma particular fase do capitalismo.
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A primeira parte diz respeito à análise que movi nos anos 70 sobre o trabalho reprodutivo, a família nuclear, o trabalho sexual, enfim, sobre toda a descoberta feminista da importância da reprodução social dentro da lógica da acumulação capitalista – com particular enfoque sobre o trabalho doméstico enquanto trabalho não remunerado e sobre o significado das relações salariais como forma de organização da sociedade, como medida para criar divisões e ocultar uma grande área de exploração. A segunda parte foca na economia global nos anos 70 e 80 a partir de sua reorganização calcada na reprodução. Fala das imigrações de trabalhadores na América Latina e na Europa, ao ataque à agricultura de subsistência… Como a estruturação da economia global mudou a organização da reprodução e da relação entre mulheres e homens na lógica do capital.
A terceira parte fala sobre a luta das mulheres por novos espaços comunitários, sobre a política dos comuns… Sobre essas repostas das mulheres em forma de lutas, com enfoque na América Latina. É uma temática, inclusive, sobre a qual discorri em outros livros também, como no ‘Reencantar o mundo’ [lançado em 2018 e cuja edição brasileira, pela Editora Elefante, está prevista para 2020]”.
Homens e divisão do trabalho doméstico:
[SF]: “É importante e necessário que se divida o trabalho [doméstico]. Nem tudo se pode dividir, claro. Até agora os homens não podem parir, não podem amamentar… Não sei no futuro, com os avanços da tecnologia do corpo [risos]… Mas até agora não, então nem tudo se pode dividir. O corpo da mulher é diferente. Por exemplo: a questão da menstruação. Não é uma coisa que para muitas mulheres é irrelevante, porque impacta no trabalho, no que fazer, no que não fazer. Agora: eu acredito que é importante dizer que isso não é a solução da temática da reprodução. Para mim, a temática da reprodução se construiu como um trabalho não remunerado que tem beneficiado os capitalistas; é o pilar de todo o tipo de trabalho da sociedade que acumulou uma riqueza imensa já que não há necessidade de construir infraestrutura reprodutiva.
É preciso, então, recuperar a riqueza que temos criado. Dividir com os homens é compartilhar o trabalho não remunerado. Isto não significa que não se deva dividir, mas não resolve a problemática da reprodução no capitalismo, não resolve uma temática de exploração. Se é um trabalho explorado, dividir um trabalho explorado pode ser uma coisa ‘boa’, mas não resolve a problemática. Outra coisa: é dificílimo dividir em forma real, já que a organização do trabalho assalariado segue sendo que, de maneira geral, os homens ganham mais que as mulheres; o que resulta em um mecanismo perverso que se um dos dois deve estar em casa, deve ser o que ganha menos dinheiro. Essa luta para dividir, então, não é uma luta que se pode dividir somente dentro de casa, é uma luta que deve ser ampliada mudando também a organização do trabalho assalariado, mudando a relação.
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No que tange ao cotidiano, à micropolítica do cotidiano da casa, eu creio que a técnica mais eficaz é a greve, não é dividir, não ensinar… É não fazer. Nós sempre falávamos umas às outras: ‘companheira, não perca seu tempo educando os homens’, que seja pela greve. Somente quando deixamos de fazer muitas coisas, compreendem o trabalho doméstico, o que significa: quando não há quem o faça, quando não está sendo feito, o trabalho doméstico é percebido. É percebido como trabalho”.
Pauta feminista e reprodução social:
[SF]: “A ideologia, a teoria, a agenda e a linguagem feminista assumiram predominância no processo de integração do trabalho feminino na economia global. Os anos 1970 são anos de grande crise do capitalismo, grandes lutas operárias, luta anticolonial – e com essa crise do capitalismo se começa uma nova organização da economia global na qual a mulher é central. Se usa o feminismo para integrar as mulheres em todas as questões, como no trabalho industrial, na prestação de serviços, etc. […]. O capitalismo se deu conta de que são as mulheres as mais responsáveis sobre o trabalho e as mais responsáveis em relação à dívida; são as que pagam as dívidas – porque, pela lógica da reprodução, se tem o conceito de que muitas pessoas dependem da sua vida”.
“A agenda feminista tem sido integrada e subvertida ao mesmo tempo. O que tem se integrado tem se submetido a um processo de categorizações – e o que foi apagado, deixado de lado, foi toda parte das práticas e temáticas feministas que podiam ser subversivas. Por exemplo: violência contra as mulheres. Sempre se fala disso em um nível individual, nunca se fala da violência estatal, das prisões, nunca se fala da violência das leis, que destroem a comunidade, leis da prática econômica. Se usa e se subverte. É uma forma que o capitalismo tem para se apresentar como democrático, para limpar sua cara”.
Atuais resistências feministas:
“As mulheres – as que se colocam dentro de uma perspectiva feminista – estão numa posição privilegiada para compreender o que está acontecendo. [Nós, mulheres,] por estarmos mais envolvidas na reprodução da vida, somos aquelas que podem encontrar, enxergar melhor, esse terreno da reprodução social, que é muito amplo: trabalho doméstico, subsistência, defesa do meio ambiente, capacidade de plantar e produzir para subsistência, etc. […] As feministas encontraram uma ótica diferente sobre o conceito de reprodução da vida. A nossa luta nos permite uma ótica, uma perspectiva diferente da vida, inclusive no que diz respeito ao conceito de resistência: estamos semeando, plantando sementes. Não é somente uma questão de lutas que dizem não à exploração; estamos criando uma nova ordem de reprodução social, de relações afetivas! Creio que isso está no coração das lutas das mulheres.
Fiquei muito impressionada com o que acontece na Argentina, Uruguai e Brasil, por exemplo. Estão se formando redes de mulheres que lutam no campo, mulheres camponesas – e também mulheres do espaço urbano – em busca de criar um acesso aos bens naturais, à comida, sem passar pelos modelos de produção capitalista, sem se submeter à exploração capitalista. A criação desses espaços, no meu entender, tem encontrado muitos caminhos nesses países e acontece dentro da luta sindical através de mulheres que estão formando o que estamos chamando de ‘intersindical’ a partir dos escritórios, das fábricas, de elementos que fazem parte da vida dos trabalhadores. Temos aí uma temática que é mais ampla do que a temática sindical.
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Essa rede intersindical das mulheres está encontrando caminhos nas redes de economia solidária, na luta contra os transgênicos, no movimento ‘Ni una menos’ [em português, ‘Nem uma a menos’]. É um processo bastante novo e extraordinário. É o que se pensava nos anos 70, mas ele não acontecia. Esse poder de intervenção – e sobretudo de conexão – como forma de luta anticapitalista”.