Texto de Safira Lopes, em colaboração ao SobreOTatame.com
This is the next century… Duas décadas do então… próximo século. É aqui e agora. Vivemos o futuro tão esperado: ciência, tecnologia, prosperidade, democracia. Yes, the future’s been sold. O futuro foi vendido assim, como uma aldeia global, essa foi a promessa que nos fizeram, a propaganda deste produto pelo qual trabalhamos duro e que hoje também consumimos.
No entanto, à medida em que avançamos na exploração de tal manufatura, nos constatamos profundamente decepcionados. Nada de carros voadores, a indústria farmacêutica não produziu nenhuma fórmula capaz de nos manter jovens para sempre, a fome ainda mata, a internet não nos aproximou nem nos tornou mais empáticos à realidades distintas. O futuro não nos reservou sequer qualquer versão de american way of life.
Opostamente, temos aqui a permanência das conduções lotadas assim como os camburões de polícia, as carroças e carroceiros coexistem com a inteligência artificial e a robótica. A indústria farmacêutica segue lucrando com Rivotril e remédio contra câncer já que a produção de alimento em larga escala, que supostamente resolveria a fome no mundo, se estabelece comercializando alimentos envenenados com agrotóxicos e exploração animal.
Leia também | Meu pai, minha mãe, meus irmãos, amigos, avó: quantos habitam em nós?
A internet se transformou num pandemônio de notícias mentirosas, escancaramento de ódio, indiferença e desmobilização. As mudanças, as informações e desinformações estão cada vez mais rápidas, every paper that you read, a necessidade da resposta instantânea no WhatsApp, um estímulo para ansiedade como são as drogas para o prazer, um prazer que se realiza na artificialidade já que não há tempo para qualquer aprofundamento nas relações humanas, que essas sim poderiam nos instigar uma maior sensação de plenitude e pertencimento, e mesmo essas são vendidas… expostas nas vitrines dos apps de relacionamento. The future’s been sold as you too. Do LinkedIn ao Tinder.
A tecnologia que, pensávamos, poderia nos dispensar de horas na empresa, aparece aqui como mais um elemento da exploração. A precarização do trabalho já é, inclusive, chamada também de uberização do trabalho. Uma flexibilização que nada tem a ver com liberdade, mas com instabilidade, insegurança e muito mais labuta. A democracia vem cometendo suicídio diante da ascensão de discursos e práticas fascistas, racistas e misóginas na arena política das instituições. As instituições. Ainda há quem acredite nelas?
E como se não bastasse todos esses defeitos e avarias do produto futuro que nos foi vendido, agora nos deparamos com mais essa faceta: o seu potencial para o desenvolvimento de pandemias letais. Mais invasivas que os satélites que nos vigiam! No one here is alone. Se você vacilar com a máscara e álcool em gel, o vírus acompanha você e aí sabe lá o que pode acontecer. You can find it anywhere. É isto.
Leia também | Otimismo da vontade, pessimismo da razão
A prometida aldeia global, que na real, destrói florestas e comunidades tradicionais para dar espaço ao plantio de monocultura e pasto de gado traz consigo todos os elementos para a disseminação de pandemias.
Antes de comprar um produto, leia sempre os componentes. Chegamos a pensar que a educação poderia nos dar os elementos necessários para essa leitura. Mas a educação, entendida como um direito universal à socialização dos conhecimentos científicos e culturais acumulados pela humanidade – essa foi mais uma das promessas que nos fizeram sobre o futuro – se mostrou capenga porque também vendida. A coexistência da educação enquanto direito e mercadoria não permite que todos tenham as mesmas condições de acessá-la.
A permanência de métodos e conteúdos padronizados ao modo elitista, urbano, eurocêntrico aliado à um processo produtivo altamente competitivo, instável, precarizante e desumanizador acabou cunhando à educação um espaço muito limitado, ou ao espaço que aqui lhe cabe: acomodação dos sujeitos. Não peçam seus investimentos de volta, não aceitamos devolução.
Leia também | A peste que nos assola: uma reflexão sobre pandemia e solidariedade
A canção do Blur que suscitou esse textículo foi lançada em 1995 e é uma das faixas do “The Great Escape”, um dos álbuns mais aclamados da banda, e muito importante para o cenário de rock alternativo na década de 90. Ela versa sobre um futuro que não é mais uma aspiração, mas já uma realidade seguida de desilusões.
O seu clipe faz uma clara alusão à obra de Anthony Burgess “Laranja Mecânica”, adaptada para o cinema por Stanley Kubrick. Essa obra, que também não deixa de colocar uma lupa nas letras pequenas do contrato de venda, versa sobre a base violenta com requintes de crueldade dessa sociedade de consumo.
Talvez àquela época – década de 70 a 90 – muitos ainda acreditassem num futuro possível, as metarranativas se desmanchavam, é claro, tudo era mesmo muito incerto, mas assim permanecia, ainda existia a dúvida do que poderia ser.
Ainda poderia existir uma terceira via, uma possibilidade de conciliação entre capital e trabalho. O futuro, já sabíamos, não seria consumido por todos de maneira igualitária, mas ainda assim poderia ser um bom negócio. Mas a arte, é preciso prestar atenção a ela, pois ela é sentinela que vê o avanço do perigo de longe.
As reformas que se seguiram à adoção da terceira via, ou do social-liberalismo se evidenciaram como uma pavimentação da estrada para o inferno ou como uma tentativa de perfumar o que é essencialmente mal cheiroso. “As utopias do capitalismo se esgotaram”, ouvi um colega muito querido dizer certa vez em uma aula sobre movimentos sociais, “agora é a vez das distopias”. Well, here is your lucky day. Já vivemos a primeira delas. The Universal’s here.
E então? When the days they seem to fall through you… Daremos de ombros e seguiremos consumindo, engolindo a contragosto o produto distópico que temos em mãos? Se não podemos devolvê-lo, ainda podemos lançá-lo contra a parede? Jogar na lata de lixo? Well, just let them go!
Karl Marx já expunha em sua obra “O Capital” o quanto a acumulação capitalista baseada na produção incessante de mercadorias culminaria num esgotamento não só da força de trabalho humana como dos próprios recursos naturais. A tal aldeia global prometida se trata, na verdade, da corrida capitalista imperialista pela conquista de territórios, para privatizar tudo o que existe – mesmo o que já se encontra disponível gratuitamente a todos no planeta.
Leia também | Esquerda revolucionária! Não, pera…
E é essa ocupação levada às últimas consequências que nos colocaram na atual situação de isolamento social, antes sutil, agora regulamentado em decretos, posto que é uma questão de saúde pública. Brecar esta distopia não é mesmo tão simples quanto a metáfora propõe, mas há alternativas, e elas devem ser urgentemente discutidas e tornadas viáveis.
O ecossocialismo é uma alternativa que tem sido apresentada desde o início deste next century e que penso estar alinhada com os desafios desse nosso tempo: basicamente desmonetarização da produção econômica, ou seja, produção baseada nas necessidades humanas e nos recursos disponíveis, sem exploração. A proposta é ampliar radicalmente a democracia permitindo que os mesmos sujeitos que produzem sejam aqueles que controlem o processo produtivo. É a ecologia associada ao socialismo.
Milton Santos, geógrafo negro e brasileiro, discute a possibilidade de uma outra globalização possível, a serviço dos seres humanos. Assim, ele destaca que a unidade técnica, a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta podem ser aliados na construção de uma nova metanarrativa que nos conduza à realização de uma nova história.
Leia também | Nada será como antes, mas o futuro nos reserva um Novo Mundo Possível
Ora, temos aqui uma pandemia em um tempo convergente em quase todos os espaços do globo, here for everyone, uma situação comum que enfrentamos apesar das diferenças locais. Há que se convergir também o momento da luta. A ideia aqui é a de tomar as armas forjadas para a nossa opressão contra os opressores. E acrescento, a sociodiversidade citada por ele como enriquecedora desse processo de resistência só pode ser concretizada à medida que nos entendemos também como parte de uma biodiversidade.
Uma outra saída, que não exclui as proposições anteriores, é o retorno à terra, fazer o caminho inverso do que tem sido colocado pela lógica produtiva acumulativa de inchaço dos centros urbanos. Retornar ao campo, produzir os próprios alimentos, garantindo qualidade e segurança alimentar, ouvir e aprender com os saberes próprios dos camponeses, indígenas, ribeirinhos e quilombolas, reconhecer suas técnicas e tecnologias produtivas, suas relações de trabalho que engendram uma cultura muito mais harmoniosa com a terra onde fincamos nossa vida.
Leia também | O sonho de uma cidade inteligente e sustentavelmente possível
Temos ouvido muito nesses dias, tão mais estranhos do que já têm sido os dias ‘normais’, que é preciso cuidar da vida, que a vida é uma só, pois bem, este planeta que temos também é um só. Na mesma proporção em que ameaçamos sua saúde, ameaçamos a nossa própria. Construamos, então, outro futuro a ser redistribuído. Este futuro só será possível se não for colocado à venda. O futuro não está à venda.
Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento, desta maneira, abrimos espaço para profissionais que possam tratar de temas mais especificamente.
Safira Lopes é nascida e criada na Ilha Magnética da Terra do babaçu que a natureza cultiva. Formada em Pedagogia e uma professora muito maluquinha de educação infantil da rede pública municipal de São Luís, atualmente cursando Mestrado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Defensora da escola pública e militante da educação do campo. Acredita que, na luta de classes, de todas as armas, a poesia é a que mais atinge. Fã da Rita Lee. Feminista, deboísta mas com sangue nos olhos, e que, vez ou outra, usa palavras para compor seus silêncios.