SoT entrevista Ana Suy: sobre amor, solidão, maternidades e quarentena

Frequentemente sentimos que nos falta muita coisa e parece que quase sempre um outro possui exatamente aquilo que nos falta, atribuímos-lhes tudo o que temos, até mesmo uma certa satisfação ideal. E assim criamos uma felicidade perfeita, uma invenção nossa (Goeth, In Werther).

A citação acima está no livro Amor, desejo e psicanálise da nossa entrevistada de hoje, Ana Suy Sesarino Kuss – psicanalista, escritora, professora universitária e pesquisadora; de uma escrita tão fluida que é difícil não ser cativado, por isso sou tão suspeita ao tecer comentários. De maneira muito solícita e gentil, Ana Suy aceitou conceder essa entrevista ao SobreOTatame.

As perguntas abaixo passeiam pelo amor e seus desdobramentos, a fantasia, a quarentena, a solidão, maternidades e um pouco do livro novo, A corda que sai do útero. São questões que me atravessam, que às vezes causam aquilo a que chamamos de desamparo, estão sendo postas não com o intuito de obter respostas e certezas, mas pelas possibilidades de continuar questionando.

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Aproveitem!

Os Amantes, 1928 – René Magritte

SoT: Ana, quando o editor-chefe, Gustavo Sampaio, sugeriu essa entrevista, fiquei num misto de nervosismo e ansiedade, antes de entrar em contato. Já acompanho teus escritos há certo tempo, teus livros estão sempre à mão para uma consulta ou um afago nas minhas angústias (risos). Então, antes de começarmos, quero agradecer por tão gentilmente ter aceitado nosso convite.

Dito isso, comecemos pelo amor e seus desdobramentos, um assunto que está sempre em voga, na clínica, nas mesas de bares, no silêncio de cada um, nos teus escritos; os atravessamentos do amor estão sempre presentes. Numa de suas cartas a Jung, Freud fala que a psicanálise é a cura pelo amor. Já Lacan, no seminário 20, diz que “não se faz outra coisa em uma análise, a não ser falar de amor”. Podes discorrer um pouco mais sobre a relação entre amor e psicanálise?

Ana Suy – “Quero começar agradecendo também, Joceline. Pelo convite e pelas perguntas tão bem feitas e alinhadas com meu trabalho, além da postergação do prazo!

Uma coisa que eu sempre digo é que o ‘amor’ não é um conceito psicanalítico. Então, se a psicanálise nos ensina algo a respeito, esse saber certamente não é da ordem de uma teoria, não é de um saber intelectual, mas é produto de uma experiência (sustentada por um ensino teórico).

E isso faz toda a diferença, porque é um saber que não se transmite, é um saber que cada um, em sua própria trajetória, descobre por si só. No entanto, quando alguém que levou longe sua análise fala de amor, isso causa efeitos!

Ana Suy.

Não são efeitos de ensino-aprendizagem, mas efeitos de desejo. De causa de desejo. Então, a relação entre amor e psicanálise é algo que só aprendemos sob transferência. Há outro ponto que eu gostaria de destacar, tem relação com a citação de Lacan que você comentou. É sempre de amor que se sofre. Por ser amado de menos, por ser amado demais, por não saber o que é o amor, por amar muito, por amar pouco… A gente ama muito mal.

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A fantasia neurótica, num sentido geral, faz a gente acreditar que o amor resolveria as coisas, tamparia os nossos vazios, aniquilaria as nossas faltas. Por isso, é de amor que sempre se fala em uma análise. Baudelaire escreve: “Se começo pelo amor, é que o amor é, para todos – por mais que o neguem -, a grande coisa da vida”. É claro que há muitas pessoas que ao buscar uma análise não falam de amor, falam de outra coisa… isso não é motivo para que o analista acredite que não é de amor que se trata.

O amor é a única coisa que importa na vida. E não estou dizendo por mim, não digo porque é assim para mim e então concluo que seja assim para todos. Em minha experiência clínica é isso que testemunho”.

Qualquer coisa que venha a aparecer como importante para alguém, aparece enlaçada pelo amor, pelo desejo de amar, pelo desejo de ser amado. Mas esse ‘querer ser amado’ aprisiona, adoece, e acaba levando, paradoxalmente, a uma dificuldade no campo do amor.

Ana Suy.
Capa do álbum Casually Dresed & Deep in Conversation, da banda inglesa Funeral for a Friend, inspirado pela obra de René Magritte (Foto: Reprodução/Internet).

SoT: Você fala num post que “amar é sobre suportar a falta, em si mesmo e no outro, nem um completa o outro, nem o outro completa um”. Poderia falar um pouco mais sobre isso, sobre essa busca de completude, de fazer dois virarem um que, em geral, cerca as idealizações das relações?

Ana Suy – “Um aforisma lacaniano muito replicado é quando Lacan fala que ‘a relação sexual não existe’. Há quem escute e entenda que, então, o amor também não existe, mas é o contrário. O amor só é possível porque a relação sexual não existe.

Que o amor seja possível, no entanto, é muito diferente de dizer que ele irá acontecer. As contingências importam. Se tudo na vida depende de sorte, por que com o amor seria diferente, não é? Mas o amor, então, longe de resolver algo, vai ser problematização na veia.

Amor é o esforço contínuo de permanecer perto de alguém, não só apesar dos pesares, mas por causa deles.

Ana Suy.

Quando duas pessoas viram uma só é porque alguém deixou de existir. Então, amar, é um esforço duplo: para estar com alguém e para estar com a gente mesmo. Senão, se a gente se demite de nós mesmos, ou, em termos lacanianos, se traímos nosso desejo, nos reduzimos ao lugar de puro objeto para o outro. Aí é difícil, viu? E sofrido também”.

SoT: No livro “As cabanas que o amor faz em nós”, tem um trechinho que muito me marcou: “Era tudo fantasia, sempre foi tudo fantasia. O mundo não passa de uma sucessão de fantasias onde a gente faz as pessoas caberem nas nossas e se encaixa nas delas”. Queria que você falasse um pouco mais sobre isso: como nos utilizamos desse recurso da fantasia para sustentar as relações?

Ana Suy – Tem um dito popular que diz que ‘o amor é cego’. Eu gosto dele, porque demonstra bem esse ponto que você destacou. A gente nunca vê o outro como ele é, especialmente quando o ama. E aí eu gostaria de recortar dois pontos:

O primeiro é que o amor coloca filtros no outro muito mais eficazes que os do Instagram, por exemplo. O amor é a maior gentileza que existe e isso é um perigo. Quando a gente deixa de amar alguém, tende a dizer que a pessoa nos enganou, nos decepcionou, mas muitas vezes ela não fez nada disso, é o que era desde antes, mas as lentes do amor… transformam o outro numa versão idealizada de nós mesmos.

Aquilo que não somos e gostaríamos de ser, frequentemente atribuímos ao outro e nos chateamos quando descobrimos que ele é ‘apenas’ o que é.

Ana Suy.

O segundo ponto é que não existe uma verdade maior da pessoa, uma essência da pessoa, um ser da pessoa. Cada um é o que é à medida que tem pessoas por perto, uma situação X da vida. Esse é um ponto que gera muitas controvérsias.

A gente tem a fantasia, por exemplo, de que o amor faria com que uma pessoa fizesse tudo pela outra, inclusive ‘deixasse de ser quem é’. Mas o que ela é? Não se trata de uma verdade última, de uma essência, mas daquilo que ela não pode recuar nela.

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Acho que o amor tem a ver com despir a pessoa das nossas fantasias, mas isso não se faz de um modo completo ou definitivo. A fantasia é algo que nos coloca no mundo. Se a gente se despisse de todas as fantasias, não teria amor, não teria o outro e nem a gente mesmo. Amor tem a ver com poder perder as fantasias mais ambiciosas e poder reconstruí-las de modo mais delicado. Amar tem a ver com perder”.

New York Movie – Edward Hopper

SoT: Estamos nesse processo de viver uma pandemia, numa quarentena que efetivamente não aconteceu para todos, mas mudou para todos o modo de se relacionar com o outro. O virtual aproxima, mas ainda existe ali algo da solidão do qual não podemos nos desfazer, e às vezes também não conseguimos abraçar. Estar nesse lugar de distanciamento deixa tudo mais complexo. Queria saber como você pensa as relações nesse novo normal, que ainda não existe, e está por ser desenhado? Seremos mais solitários?

Ana Suy – “Esse termo, ‘novo normal’, acho esquisitíssimo. É que eu nunca acreditei em normal. Acho que quem leva sua análise longe (retornando agora à primeira questão), tem esse ideal do normal dissolvido. Então essa palavra me incomoda pra chegar nesse conceito que tem se disseminado.

De todo o modo, eu acho que a solidão faz parte da vida humana, na melhor das hipóteses. Faz parte de uma certa maturidade do nosso psiquismo poder ficar sozinho, mesmo quando estamos com alguém. Algumas pessoas não conseguem erguer paredes imaginárias ao estarem em meio a algumas ou muitas pessoas para se recluir e sofrem muito com isso.

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No mais, há um desamparo que é da vida humana, e que me parece que esse, sim, a gente pode lapidar. Entendo que o desamparo é estrutural, mas pode ser emoldurado pela solidão. E a solidão é um luxo.

Ana Suy

Estou trabalhando essas coisas na minha tese de doutorado que faço na UERJ, sobre ‘amor e o gozo feminino’, orientada pela Rita Manso. E eu cheguei no tema da solidão pela via do amor, veja só! Eu realmente tenho um apreço pela solidão, acho que ela é tomada de um modo pejorativo rápido demais em nossos tempos”.

SoT: Por fim, maternidades. Assisti tua live com a também incrível Maria Homem, sobre quando o desejo do filho não vem. Partindo de uma visão sobre a contemporaneidade, como você analisa as novas relações entre maternidades e o feminino? Quando nasce uma mãe?

Ana Suy – “Ah, eu gosto muito disso, que você diga ‘maternidades‘, no plural. Parece-me cada vez mais que é mesmo disso que se trata. Vivemos um tempo que a disjunção entre mulher e mãe fica cada vez mais explícita.

Por muito tempo a gente tentou fazer equivaler mãe e mulher (sem sucesso, é claro). Agora, com os avanços do feminismo e da ciência, a gente sabe que uma doadora de óvulos não é bem uma mãe, que uma mulher que deu à luz e não pode ficar com o bebê não é exatamente uma mãe, ainda que uma mulher não passe ilesa dos lugares-em-si que foram tocados por algo da maternidade.

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Mas continua essa questão, o que é uma mãe, então? E me parece que não se pode responder essa pergunta por uma via de mão única. Talvez por isso as mães se animem tanto, em geral, quando as crianças começam a falar algo do tipo ‘mama’. Talvez só aí possa nascer uma mãe, quando ela se faz reconhecer, de algum modo”.

SoT: Para encerrar, e com um pouco de curiosidade, o que podemos esperar do livro novo, “A Corda que sai do útero”?

Capa do novo livro: A corda que sai do útero (Foto: Divulgação/Internet)

Ana Suy – “É um livro muito diferente de tudo o que escrevi. É o meu único, ou o meu primeiro (quem saberá?) livro de poemas. Eu escrevo um pouco da minha relação com a dança, fiz ballet durante muitos anos da minha infância e da minha adolescência – escrevo do meu desejo de ter um bebê, da minha gestação, do meu puerpério… Mas não é autobiográfico, assim, num sentido literal.

Algumas coisas que estão lá eu vivi na pele mesmo, mas outras eu vivi no pensamento, antes de viver na pele. (Só escrevo o que vivo na pele, mesmo que seja fabricado). É um livro sem muitas pretensões, gosto de chamá-lo de ‘pequeno livro’, de ‘livrinho’.

Ana Suy

Eu o escrevi porque precisava escrever, não tinha opção, e ele está sendo publicado porque essa sensação de ‘necessidade’ se impôs. Acho que o amor é algo dessa ordem. Quando o contingente se transforma em necessário, diz Lacan, em seu seminário 20.

Ainda bem que tenho a Editora Patuá na minha vida, que confia e aposta em meu trabalho. Tem alguma coisa ou outra que escrevi quando estava grávida, mas a maior parte do livro eu escrevi agora, já nesses tempos de pandemia”.


Agradecemos a Ana Suy pelas respostas tão sensíveis, é sempre uma experiência única ler coisas de quem a gente admira. Que vocês tenham gostado também, e podem mandar sugestões de temas e entrevistas =).

Joceline Conrado é psicóloga de orientação psicanalítica. Atua em São Luís como psicóloga clínica e no terceiro setor, na gestão e implementação de projetos sociais. É redatora e da área de planejamento no SobreOTatame. Se interessa por temas relacionados a gênero, psicanálise e questões raciais. Gateira e leitora compulsiva.

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