O cantor e compositor César Lacerda (Foto: Circus/Divulgação).
Voltei minhas atenções para a música brasileira. E não poderia ter sido uma decisão mais acertada. Tem sido assim desde 2018, mas 2019/2020 foi uma fase decisiva.
Não só foquei em consumir o que tem sido produzido no Brasil, como as próprias indicações de amigos, conhecidos e até os filtros feitos nas redes sociais, como no Twitter, tem sido com este recorte da produção nacional.
Destas descobertas, surgiu o cantor e compositor César Lacerda. Em entrevista ao SobreoTatame, o artista falou sobre seus métodos de composição, a influência das cidades que morou em sua forma de pensar música, além de análises sobre a cultura brasileira.
SobreOTatame – Diamantina, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, além das referências e influências de tantos artistas e colaboradores ao longo de seus lançamentos. Como a música brasileira e as diferenças entre cada território influenciam seus modo de compor e pensar música?
César Lacerda – Ter vivido em tantas cidades e colaborado com artistas tão diversos, certamente, moldou muito da minha forma de pensar e de fazer música. Tenho a sensação de que em Diamantina, que é a cidade onde nasci, se construíram as estruturas deste meu relacionamento plural com a música.
O fato de eu ser de uma família de músicos, de ter estado em contato próximo e desde muito cedo com a música, e daquela cidade, ali pelo final dos anos 80, início dos 90, ter ainda preservada e marcada na pele da vida social a presença de manifestações culturais diversas de maneira tão fulgurante, como as festas religiosas, as serestas, o Carnaval de rua, isto deixou marcas em mim. É como se fosse natural esse trânsito entre música de rádio, música erudita Europeia, música cristã e música dos nossos povos ancestrais – pelo menos, para mim, era.
Mais tarde, quando faço 12 anos, eu me mudo pra Belo Horizonte e mergulho em três cenários distintos: o rock progressivo, que na minha adolescência era algo bastante expressivo na cena local; a música popular brasileira, que é o lugar onde me localizo esteticamente quando vou começar a compor; e a música de vanguarda, por conta da minha formação em música e, em seguida, por conta da faculdade que curso (bacharelado em flauta transversal).
Mais tarde, quando eu faço 20 anos, eu me mudo para o Rio de Janeiro. Lá, eu mergulho no samba (eu chego no Rio no auge do que eles chamam de “revitalização da Lapa”). Interesso-me pela cena da música universal (que era também um troço muito forte por conta do Itiberê Zwarg e a sua Orquestra), pelo Guinga (que é uma espécie de final e começo da canção popular brasileira), e no rock indie do início do século.
O meu primeiro disco, que lanço em 2013, seis anos depois de chegar no Rio, vem preenchido de toda essa bagagem. É o retrato de um músico que tocava em sala de concerto e em roda de samba na favela. Que ambicionava tencionar os limites destes ambientes todos. E que enxergava algo de profundamente brasileiro nisso tudo – o disco Porquê da Voz é sobre isso.
Depois, por fim, São Paulo, que é “a cidade das oportunidades” e, portanto, é onde eu me profissionalizo. No sentido, de que é a cidade que traz as condições para eu viver de música, ser reconhecido como um cantor e compositor do cenário de música brasileira na atualidade com alguma representatividade.
César Lacerda.
SobreOTatame – Conheci seu trabalho recentemente, por meio da indicação de uma amiga. “Tudo Tudo Tudo Tudo” me arrebatou de cara. E uma das relações que criei, a cada nova audição, foi em como as músicas conseguem se conectar. Entre elas, a reflexão inicial dos primeiros versos de “Isso Também Vai Passar”, que diz: “Vou te contar/ Que tudo, um dia, vai passar”. Já em “Percebi Seus Olhos Em Mim”, a faixa encerra com: “Qual escolha agente faz pra acertar/ Qual de nós primeiro vai se levantar/ Enfim, dizer que sim/ Percebi seus olhos em mim”. Sinto que o disco fala sobre escolhas: tanto pela escolha dos caminhos quanto pela escolha após ter se decidido sobre elas. Qual o motor de “Tudo Tudo Tudo Tudo”?
César Lacerda – É interessante o que você pontua. Eu nunca havia pensado nestes termos. Mas acho que você tem razão. Eu diria, ainda assim, que é um disco sobre o tempo, que tenta refletir sobre esse aspecto da vida.
As canções deste disco são mesmo como num filme, onde a direção escolhe por mostrar uma mesma cena repetidamente, algo que aconteceria num átimo de segundo, e aquilo é visto de diversas perspectivas, em ângulos variados. Como se fosse necessário buscar o sentido último nas coisas mais banais.
César Lacerda, sobre “Tudo Tudo Tudo Tudo”.
Em “Percebi Seus Olhos Em Mim”, por exemplo, que é a última canção do disco, a letra discorre sobre aquele instante onde os olhos de duas pessoas se cruzam e elas se sentem atraídas uma pela outra. É uma canção de três, quatro minutos sobre um evento que não durou mais do que uns poucos segundos.
O motor do disco era o de criar canções que me aproximassem de um público mais amplo e variado. Era tentar inscrever as minhas canções dentro do estilo que se convencionou chamar “MPB Pop”. Como já era um momento onde o Brasil friccionava com polarizações muitos graves dentro da sociedade, era 2017, eu desejei fazer um disco que mais gerasse conforto do que confronto com o ouvinte.
As canções, mesmo quando tratam mais diretamente de questões ásperas, fazem isso de forma sutil. Como em “Isso Também Vai Passar”, que pode ser percebida como canção de amor, mas também canção de protesto.
Na altura do lançamento, houve quem observasse que o disco desejava ser pop, mas era elegante demais. Talvez, seja mesmo. E isso dá o tom do desejo do disco e da temperatura das coisas no Brasil desde então.
SobreOTatame – Na resenha de “Tudo Tudo Tudo Tudo”, Cleber Facchi, do Miojo Indie, te apontou como um artista que nasceu pra ser grande. Quando penso em artistas assim, penso na forma como estes conseguem criar trabalhos coesos, de linguagem própria e, mesmo transitando entre estilos, não se perdem neles. A sua discografia aponta justamente esse caminho. E nela, é a sutileza dos versos e das melodias que me cativa tanto. Quais são as suas referências para uma leveza tão característica em cada música?
Se penso em leveza, logo me lembro de João Gilberto. Que, todavia, é um dos artistas mais radicais da nossa música popular. Aliás, eu gosto de pensar nessa tensão: de que dentro da leveza energias muito radicais se rivalizam em busca de equilíbrio.
Mas acho também que tem qualquer coisa da minha personalidade aí. E eu não chamaria de leveza, porque não me sinto assim, uma pessoa, especificamente ou propriamente, leve.
Eu diria que sempre me interessei por tentar iluminar aspectos mais escondidos das coisas da vida. Parece-me que o que você chama de leveza eu chamaria de interesse pelo artesanato das sutilezas. Agora, diferentemente do João, que era uma espécie de escultor, alguém que se dedica a um bloco de mármore por anos em busca de perfeição, eu me sinto mais interessado no diletantismo.
César Lacerda.
É um traço geracional, inclusive. Eu gosto de me aventurar por áreas distintas e distantes – por mais que aquilo, adiante, me gere algum tipo de sofrimento por eu achar que não realizei bem uma ideia.
SobreOTatame – Em entrevista ao Uai, você afirmou que quer insistir na “possibilidade de que o ouvinte ainda tem inteligência e paciência em me ouvir e me entender”, ao citar a experiência dos discos. No site SobreOTatame, por exemplo, a redatora Steffi de Castro criou o quadro Ainda Escuto Álbuns a partir de uma troca de tuítes com o Teago Oliveira (vocalista da Maglore). Eles comentaram justamente sobre a experiência de ouvir um disco na íntegra e em como a aposta em singles tem dominado a indústria. Qual sua atual visão sobre o mercado fonográfico brasileiro e quais estratégias você tem utilizado para criar seu próprio material?
César Lacerda – Em 2020, este ano tão peculiar, eu mergulhei mais uma vez neste processo: fazer um disco novo – lanço-o em 2021. Debrucei-me novamente sobre este desejo de contar uma história e, para isso, organizei-a dentro de uma configuração, uma espécie de compêndio, cujo nome é mesmo esse: “disco”.
Mas, naturalmente, há muitas formas de se contar uma história. Eu poderia contá-la aos poucos, lançando canções isoladas que não seriam compiladas num único objeto, por exemplo. Mas este formato, disco, e a ideia que se configura a partir dele e dentro dele, algo como que uma dramaturgia, contém ainda particularidades que me fascinam.
César Lacerda.
Na entrevista que você cita, eu dizia à repórter do Estado de Minas que a minha insistência em lançar discos era uma aposta na atenção do público. Pois, numa época onde o nosso foco está tão dividido entre tantos estímulos, desejar prender a atenção de alguém por trinta, quarenta minutos com música se tornou um desafio grandioso. Por isso, eu me dizia insistente, fazendo uma aposta na inteligência, que é uma dimensão humana que parece se desenvolver através de uma dedicada repetição em uma ação, e paciência, que é a forma de se acessar essa dimensão. Enfim, era uma provocação.
Se analisarmos a cultura a partir da sua dimensão institucional, chegamos à conclusão de que se vive um momento trágico no país (a pasta ministerial tornou-se na gestão do presidente Jair Bolsonaro uma secretaria alocada como órgão dentro do Ministério do Turismo). E isso, obviamente, afeta a vida das pessoas, o funcionamento das sociedades.
A falta de estímulo, as sucessivas crises que levam ao empobrecimento, o discurso de ódio, o corte em fomentos, as estratégias de guerra híbrida, tudo isso vai minando o cenário, que vai ficando mais árido. Ainda além, há o mundo digital impondo uma série de questões, de novidades e desafios – se por um lado, temos a sensação de uma expansão, por outro, experimentamos uma sensação de vazio.
Acho mesmo que o Brasil segue sendo um país cuja música popular contém diversidade, vitalidade e riqueza. Há muitos artistas criando de formas variadíssimas e muito interessantes. No entanto, estamos a meio do caminho. Já um tanto distantes do mundo do século XX, mas ainda um pouco atemorizados com questões que se apresentam.
Tenho bons olhos voltados para o futuro. Mas é preciso, eu penso, estar atentos às formas como estes grandes monopólios digitais intervém nos processos culturais das sociedades. E também, rivalizar veementemente contra esse governo e a sua agenda.