SOT entrevista: maranhense lança conto sobre o universo LGBTI+, na coletânea “Orgulhe-se”

A coletânea de contos “Orgulhe-se”, organizada por Davi Monteiro e Jennifer Pereira e editada pela Editora Cervus (Foto: Reprodução/Instagram).

Texto de Carlos Everton, em colaboração ao SobreOTatame.com

Mais que nunca e como sempre, é tempo de ouvir as vozes da galera na nossa sociedade que resiste e existe, apesar de todo ódio e desprezo, como a População LGBTQIA+. E uma das melhores maneiras de canalizar essas vozes, como falei outro dia, é pela arte.

Na literatura, saiu agora, em agosto de 2020, a coletânea de contos Orgulhe-se, organizada por Davi Monteiro e Jennifer Pereira e editada pela Editora Cervus, especializada em produções feitas pela população LGBTI+ e à ela (mas não apenas) dirigida. E a antologia conta com produção maranhense!

O bibliotecário maranhense Carlos Wellington (Foto: Luhilda Ribeiro/Reprodução/Twitter).

Carlos Wellington Martins é bibliotecário formado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em 2007 e em 2009, passou no Concurso Público e até hoje trabalha como bibliotecário na Diretoria Integrada de Bibliotecas da UFMA. Fez mestrado na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e Doutorado em Políticas Públicas onde o objeto de pesquisa dele envolveu as Políticas Públicas para livro, leitura, literatura e bibliotecas.

A preocupação dele foi entender a biblioteca como espaço cultural e o livro e a leitura como artefatos culturais que poderiam proporcionar o exercício da cidadania, entendendo a leitura como direito humano. Foi Conselheiro Estadual também nesse seguimento de livro, leitura, literatura e bibliotecas, representando a sociedade civil no órgão com atuação na Secretaria de Estado de Cultura.

Tem livros e artigos publicados, além de ser organizador da primeira publicação que tratava única e exclusivamente da temática LGBT na Biblioteconomia. Além disso, tem alguns contos publicados, inclusive o que foi aprovado na seleção para a coletânea Orgulhe-se. E é sobre o lançamento que entrevisto ele neste material especial. Boa leitura!


SobreOTatame: Fala um pouco sobre essa coletânea recém-lançada, a “Orgulhe-se”. Como surgiu a oportunidade de participar dessa antologia?

A coletânea de contos “Orgulhe-se” (Foto: Reprodução/Instagram).

Carlos Wellington: A Ed. Cervus é uma editora especializada em autores LGBTs. Os livros, contos, crônicas, poesias também versam sobre o universo LGBT. A editora abriu edital ano passado por meio do qual os autores poderiam submeter um texto a uma seleção e que, caso aprovado, faria parte da coletânea Orgulhe-se que visava ter autores em vários Estados brasileiros e eu tive meu conto aprovado. Meu conto se chama Um close de natal: narra a história de uma travesti que na véspera de Natal recebe a visita de três espíritos: o espírito da Travesti do Natal Passado, o Espírito da Travesti do Natal Presente e o Espírito da Travesti do Natal Futuro. É uma analogia lógica à famosa história do Charles Dickens, Um conto de Natal.

E aí, com cada visita, ela rememora a trajetória, a descoberta da identidade de gênero, a sua vida, quando foi expulsa de casa, a questão da prostituição, a sua vida presente e, principalmente, a perspectiva de futuro que ela tem para a vida. Ela se chama Vírginia Lispector, em homenagem a duas grandes escritoras, a Virgina Woolf e a Clarice Lispector, e ela escolheu esse nome em razão principalmente da relação que ela tem com a Literatura e quem tiver acesso ao conto vai entender melhor.

SoT: Tu falaste aí de pelos menos três referências, uma das quais eu já ia te perguntar que é o Dickens. Além dele, Woolf e Lispector. Na literatura, na qual como tu falaste não é a primeira vez que tu te aventuras, quais são tuas principais referências? Quais impactaram mais nesse trabalho especificamente?

CW: Sempre gostei de uma literatura que seria considerada periferizada, que não teria até então conhecida do grande público. Por exemplo, Cassandra Rios, que foi a primeira mulher a vender um milhão de livros no Brasil e quase todos os livros dela foram censurados na época da ditadura principalmente por terem conteúdo sexual lésbico. Lembro muito na época que eu fazia 2º grau, uma professora de literatura comentou sobre o livro de Cassandra Rios de uma forma muito pejorativa, muito preconceituosa, falando que o livro era nojento.

Acabou que a censura que ela tentou fazer atiçou minha curiosidade de leitor e no outro dia eu fui procurar o livro, que era O Gamo e a Gazela, na Biblioteca Pública e, desde então, eu sempre tenho procurado esse tipo de leitura. Eu gosto de fazer sempre referência a Maria Firmina dos Reis, que é a primeira mulher a escrever um livro no Brasil; Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo; João Silvério Trevisan, são grandes referências, porque retratam o cotidiano que vivem e são colocadas à margem da sociedade.

SoT: Em que sentido tu achas que é importante, politicamente, a demarcação de uma Literatura LGBT?

CW: Existe até uma grande discussão, uma polêmica, se existe uma “Literatura LGBT” ou uma “Literatura com temática LGBT”. Porque quando afirmamos que existe a primeira, é como se nós afirmássemos que necessariamente só quem pode fazer a leitura daquele material fosse a população LGBT. Mas a gente sabe que a literatura transcende essas barreiras.

Eu prefiro usar o termo “Literatura com temática LGBT” porque aí está aberto para qualquer pessoa de qualquer orientação sexual e identidade de gênero fazer a leitura. Mas que é importante a demarcação política, de ser um escritor LGBT, de ter um personagem LGBT, um personagem LGBT, ainda é importante. Porque por mais que – se a gente pensar na formulação teórica da Judith Butler segundo a qual “tudo é performatividade”, que todas as posturas, ações, elas são impostas pela sociedade e acabam marcando socialmente as pessoas entre homem, mulher, masculinidade, heterossexualidade, cisgeneridade – mas a gente ainda tá na questão do alcance de direitos, nós ainda somos minorias sociais que não têm plenamente o gozo dos seus direitos.

Nós não podemos andar de mãos dadas tranquilamente pois sabemos que estamos correndo o risco de sofrer algum tipo de agressão, mesmo com uma lei que coibiria ou puniria a LGBTfobia. A questão da inserção das travestis no mercado de trabalho formal, da empregabilidade trans, uma série de fatores que não foram conquistados. Então, a gente se afirmar enquanto homem gay, mulher lésbica, um homem trans, uma mulher trans, uma travesti, ainda é uma demarcação política porque somos uma sociedade que não tem o gozo completo dos nossos direitos.

SoT: Abordando uma questão polêmica aqui: o que tu achas da discussão do público LGBTI+ como mercado consumidor? Por exemplo, ano passado, no dia 28/06, a Amazon vendeu vários livros eletrônicos com a temática LGBTI+ a custo zero ou a preços muitos baixos. A polêmica ficou na questão de ser a Amazon uma grande corporação, ícone capitalista. Discussões semelhantes já foram levantadas por exemplo com a propaganda de dia dos namorados da Boticário que tinha um casal gay e em outros seguimentos de representatividade de minorias, como os filmes da Mulher Maravilha e da Capitã Marvel. O que tu achas dessa discussão, particularmente no mercado de livros (já que a literatura é uma forma de arte, mas também um nicho de consumo)?

CW: É uma discussão válida. Eu acho que a gente tem que pensar da seguinte forma: a minha formação de entendimento da sociedade, pela qual eu faço análise social é por meio da dialética, materialismo histórico. Então, eu entendo que a gente vive no sistema capitalista. E esse sistema, como é baseado na forma como se produz, nos meios de produção, onde o interesse principal é a formação de consumidores mais do que cidadãos e onde tudo vira mercadoria, a apropriação do mercado por essa pauta vai muito nesse sentido de também esvaziar muitas vezes o seu sentido político apenas como uma falsa forma de dizer que usa a bandeira, que apoia a causa LGBT, quando se sabe que no fundo só visa o lucro.

Principalmente, algumas pesquisas apontam, que a população LGBT se vê impelida a ter uma ascensão financeira porque ela vem acompanhada de um sentimento de liberdade. A pessoa pode sair de casa, pode se assumir porque ela que paga as contas dela. E aí a gente vê a diferenciação de classes sociais naqueles que podem se assumir enquanto LGBT e como isso constitui privilégio, então a gente não pode perder de vista a questão de que a gente vive numa sociedade de classes e que as pessoas que têm privilégios não passam pelas coisas que quem tá na periferia, que quem é afeminado, sofre no dia-a-dia. Agora, é lógico que a gente quer se ver nas propagandas, no produto.

Eu acho que tem seu lado positivo na questão da representatividade, mas a representatividade eu vejo aí como uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que ela nos permite o reconhecimento nos artefatos culturais, na mídia, nos livros, nos filmes, nas novelas, ao mesmo tempo ela causa um certo esvaziamento da pauta por não ter uma discussão mais aprofundada. Ela tem esses lados positivo e negativo. Mas dentro de uma sociedade de classes, essa discussão é bem maior.

SoT: Qual tu entendes que deve ser o papel dos empresários nessa seara então? Editoras como a Cervus, especializadas em um grupo minoritário, são poucas. Para aquelas com maior abrangência, como se daria essa atuação?

CW: Eu acredito muito no que Paulo Freire falava quando falava em educação, ele não entendia o educador como transmissor do conhecimento. Ele entendia o educador numa perspectiva social quando ele favorecia um espaço para a construção do conhecimento onde todos os sujeitos que estivessem ali poderiam contribuir. Eu penso dessa forma. Eu acho que escritor, escritora, editor, editora, livreiro, livreira, bibliotecário, bibliotecária, leitor, leitora: eu acho que todo mundo deve ir para além do produto.

Saber qual foi o processo, quais foram os determinantes, fazer discussão, palestras educativas. Eu acho que a leitura tem que vir acompanhada num processo de formação. Formação política, num sentido maior, aquela política que nos permite exercer a cidadania plenamente. Eu acredito muito que o acesso a informação, o acesso à leitura e ao livro, principalmente a questão do barateamento do livro – uma vez que a gente sabe que o preço do livro no Brasil ainda é muito caro.

Eu entendo que uma dona de casa ou um dono de casa não vai abrir mão de comprar o arroz e o feijão pra comprar um livro de quarenta ou cinquenta reais. Por isso é importante fortalecer um sistema de bibliotecas públicas, bibliotecas comunitárias, pra gente poder contribuir com o acesso à informação e à leitura. Outros países que já tem esse sistema constituído de forma mais moderna já estão na discussão da mediação, que é justamente o uso político da leitura. Nós ainda estamos na discussão do acesso.

Entendo também que tem muitas pessoas que estão indo na contramão; muitos escritores e escritoras que estão publicando seus trabalhos com recursos próprios, às vezes utilizando vaquinhas virtuais. Tem ações que estão lançando livrarias voltadas especificamente para a população negra, escritoras e escritores negros que escrevem sobre a temática. Eu entendo esse movimento como resistência, contra-hegemônico a quem é ditado como quem deve ser lido e ouvido. Existem muitas pessoas que querem mostrar sua voz. É resistência.

SoT: Tu tocaste num ponto interessante que é o da educação. Parece que ainda estamos distantes de termos literatura com temática LGBTI+ nas escolas/na formação da galera. Qual teu ponto de vista sobre isso, especialmente por ser da área de políticas públicas e por ter atuado num órgão de representatividade e controle estatal?

CW: Aí nós estamos entrando num ponto central de toda a discussão. O próprio ato de censura feito por uma professora que me estimulou à leitura. Mas a censura não é benéfica, em sentido nenhum. Eu sou completamente contrário a qualquer tipo de censura. E o pior que a gente tá vendo isso aparecendo novamente, disfarçado de discursos conservadores. Quando a gente tá lutando pela representatividade, vêm algumas pessoas querendo a invisibilidade de determinados grupos ou pautas.

Se você for procurar grandes partes dos acervos de bibliotecas públicas, escolares, universitárias, grande parte delas tem um acervo muito pequeno de questões voltadas ao gênero e à sexualidade, à diversidade. Você ainda vê muito pouco autoras e autores LGBTs em bibliotecas comunitárias e públicas, por conta do preconceito. Às vezes, por uma capa ter um elemento mais explícito, a gente tem uma sociedade brasileira muito hipócrita que não trabalha a questão da sexualidade apesar de vivenciá-la, mas não pode ser dita.

Fomos construídos sem uma educação sexual de qualidade, então é tudo muito na base da hipocrisia. A luta pra se ter esse tipo de acervo é muito grande. Foi utilizado inclusive o discurso da existência de um “kit gay” quando na verdade se tentou uma educação sexual apresentando um leque que contemplasse todo tipo de diversidade sexual. Não existia esse “kit gay”.

Ou seja, essa questão da formação também consiste no combate a essas notícias falsas, e também para a formação de uma consciência política de entender que a gente vive numa sociedade plural e que todos os tipos de manifestações – desde que não oprimam, desde que não subjuguem – são vitais para se viver em sociedade.

SoT: Então, Carlos, se tu pudesses escolher, como tu gostarias que fosse a receptividade dessa obra? Entre o público LGBTI+ e os demais?

CW: Toda obra a gente tem como um filho nosso, então sempre esperamos que as pessoas tratem bem, que seja bastante divulgada e comentada. A vantagem é que com os lançamentos a gente acaba fazendo aquilo que eu te falei transversalmente que é uma questão de educação, de apresentar a pauta de forma séria, de falar sobre a questão da literatura, da literatura periférica, da literatura das minorias sociais, daquela literatura que quer ser vista e quer ser ouvida, quer ser falada e acaba que isso contribui.

E quando a gente vê um livro publicado por uma editora voltada à população LGBT, onde escritores e escritoras são do mesmo seguimento, onde os contos retratam a vida destas pessoas, vemos um grande avanço nesse sentido. Então, espero que a obra tenha um grande alcance a nível nacional, que ela seja incorporada nos acervos das bibliotecas públicas, escolares, comunitárias e que possamos falar mais sobre essa arte que é a literatura, querendo ser vista e ouvida, da população LGBT.


A coletânea Orgulhe-se foi lançada recentemente pela Editora Cervus e está disponível para venda no formato de impressão sob demanda no site da Amazon. Para mais informações, fiquem ligados, ligadas e ligades no site oficial e redes sociais da Editora: Cervus Editora no Facebook e @cervuseditora no Twitter e Instagram. Também acompanhem o Instagram do autor: @carlos.wellington.martins.

Abaixo, a lista completa dos contos da coletânea:

1) PK1 – Davi Monteiro;
2) Mortos no meu armário – Alan Silva;
3) Um close de Natal – Carlos Wellington;
4) Arroz de Leite e Açaí – Matheus Jadejishi;
5) Até que as rosas murchem – Jeniffer Pereira;
6) Um e-mail, um bate-papo e um encontro – Jon O’Brien;
7) Colcha de retalhos – Zuri Ayodele;
8) O Amor sempre esteve aqui – Gabriel Pires;
9) Indecisos e sem domínios – Denil Dorian;
10) Aquela moça do bar – Marcelo Victor;
11) Fumaça de cigarro – Dário Contte;
12) Uni-duni e o b – HingridBatista;
13) Reflexões – Vitor Pazini;
14) O casamento – Beatriz Trimer;
15) Como sobreviver a uma festa de casamento? – Jéssica Almeida Santana;
16) Inffinitt – Tadeu;
17) O Caminho Até Lá É Colorido – Eduardo Roberto;
18) O amor pelos olhos dela – Giselle Aureliano;
19) Sem medo de amar – Alex Oliveira;
20) Ainda é cedo – L. Carpe;
21) Chuva de Verão – Ednan Gomes;
22) Até que a vida nos separe – Francisco J P Souza.


Carlos José Penha Everton (Foto: Divulgação).

Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento, desta maneira, abrimos espaço para profissionais que possam tratar de temas mais especificamente.

Carlos José Penha Everton é maranhense, nascido e criado em São Luís. Graduado em Direito, apaixonado por toda forma de arte, adora ler e, de vez em quando, se mete a escrever também (agora, no SOT). Twitter: @cjpe19. Instagram: @cjpeverton.

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