Transtornos alimentares: quando não conversamos com nosso corpo

Arte: Ilustração de Helena Morani/Instagram.

Por Thaís Fontinele, em colaboração ao SobreOTatame.

A mulher perfeita

A mulher perfeita existe sim. E ela está sempre por aí, exaustivamente estampada nas capas das revistas de moda e beleza, nas redes sociais digitais, nas produções televisivas e nos anúncios de produtos e serviços voltados à estética feminina.

A mulher perfeita, além de bonita, é bem resolvida e bastante disciplinada com sua alimentação e seus treinos, e, por isso, ela tem sempre um corpo esculturalmente definido; aliás, o corpo se tornou o grande trunfo para que a mulher perfeita seja, de fato, considerada perfeita. É necessário seguir um padrão estético minuciosamente estabelecido para se estar de acordo com as exigências de corpo ideal na contemporaneidade.

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O corpo perfeito hoje, muito diferente de outros momentos históricos, tem a magreza como o maior ideal a ser buscado. No entanto, até mesmo a magreza precisa ter uma medida exata, pois também não se pode ser “magra demais”, é necessário aliar a magreza à tonificação e à definição, afinal, ser considerada perfeita dá trabalho e exige esforço.

É dessa forma que a mulher perfeita nos faz acreditar que comer pouco e malhar muito é o passaporte para uma vida plena. A sociedade nos fez acreditar que “ter” um corpo é mais importante que “ser” um corpo. Existe toda uma rede articulada de saberes que massifica a ideia de que ser magra é a chave do sucesso, seja através do discurso médico, que alinhado aos valores mediáticos associa saúde à magreza; seja através de um discurso social que propaga veementemente que o investimento no próprio corpo passou de uma livre escolha para um dever social.

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Hoje, quem não investe no seu corpo enquanto um objeto de consumo, está à margem, é considerado indisciplinado e sem persistência, pois quem não consegue agenciar o próprio corpo não consegue agenciar a própria vida.

É difícil ser uma mulher bem resolvida em meio a todo esse contexto de culto ao corpo perfeito onde somos bombardeadas por modelos preestabelecidos. Estamos sempre às voltas com o mundo nos dizendo que ter saúde corresponde a ter uma cintura fina e um abdômen trabalhado. As revistas nos aconselhando a comer sempre menos do que comemos. As novelas e os anúncios publicitários nos contando que as mulheres que são referências se enquadram num padrão e numa norma estética bastante específica. As redes sociais nos fazendo acreditar que precisamos esconder as nossas “imperfeições” através de técnicas fotográficas, com poses específicas que nos façam parecer mais altas, mais magras e donas de músculos mais torneados. O mercado sempre nos fazendo acreditar que se investirmos um pouco mais de dinheiro, tempo e força de vontade podemos alcançar o corpo desejado e a garantir o passaporte para a felicidade eterna.

Sim, é mesmo difícil ser uma mulher bem resolvida nesse contexto, mas não é impossível. Se é bem verdade que vivemos em mundo perpassado por uma rede de poder que age sobre nossas subjetividades indicando normas de conduta a serem seguidas, também há sempre espaço para ensaiarmos as resistências. É Foucault quem nos diz que toda relação de poder pressupõe a possibilidade de erguerem-se resistências, subjetividades que vão na contramão do padrão normalizador ditado socialmente.

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Somos sujeitos de relação e multiplicidade, e, por isso, apesar de tantos regimes de normalização dos corpos, de muitos mecanismos e inúmeras tecnologias de controle, ainda é possível se fabricar no entorno social alguma subversão em relação aos regimes disciplinares, construindo-se, assim, corpos que “escapam” (ao menos momentaneamente) às matrizes normativas preestabelecidas.

Podemos entender as resistências como uma ação política de recusa ao individualismo já tão naturalizado no atual contexto e, assim, poderemos fazer circular no entorno social novas possibilidades de existir, formas mais “desassujeitadas” de ser,  a partir de uma estética da existência.

Quando o corpo e a percepção não conseguem mais conversar: os transtornos alimentares

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Na ditadura da magreza, as mulheres são mais atingidas do que os homens, pois as dicas e os conselhos de beleza são destinados em sua grande maioria às mulheres. Assim, podemos pensar sobre o impacto que todo esse bombardeio de imagens tem sobre a saúde mental das mulheres. É comum conhecermos mulheres que não estão satisfeitas com seu próprio corpo, mas algumas, por uma série de fatores, acabam desenvolvendo transtornos que devem receber tratamento especializado. Neste contexto de alta visibilidade dos corpos, tem-se aumentado consideravelmente o número de casos de anorexia e bulimia, que constituem as novas patologias do século XXI. No DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), há três tipos de transtornos alimentares descritos: anorexia, a bulimia e a compulsão alimentar. Pensando sobre os impactos da ditadura do corpo perfeito, focaremos na anorexia e na bulimia enquanto transtornos que têm relação direta com a distorção da imagem corporal.

Anorexia nervosa
É o transtorno em que a pessoa recusa-se a comer ou come quantidades muito pequenas, incompatíveis com o seu peso e a sua altura. Os critérios diagnósticos utilizados pelo profissional da área da saúde mental, psiquiatra ou psicólogo, para se definir a anorexia nervosa são: recusa alimentar, perda de peso acentuada em um período curto de tempo, amenorreia (suspensão da menstruação), recusa alimentar e distorção da imagem corporal.

A anorexia nervosa é muito mais comum em meninas, principalmente na fase da adolescência, por motivos que já discutimos aqui. O principal ponto de inflexão da distorção corporal presente na anorexia nervosa é: todos enxergam a pessoa acometida desse transtorno como alguém muito abaixo do peso, como meninas muito magras, menos elas mesmas. Para uma menina anoréxica, a magreza e a redução do peso não são suficientes: mesmo muito abaixo do peso, elas continuam mantendo dietas muito restritivas, em um contexto em que a imagem que ela vê refletida não corresponde à sua imagem real.

Bulimia nervosa
Diferente da anorexia nervosa, a pessoa com bulimia mantém o seu IMC (Índice de Massa Corporal) normal, fato que não ocorre na anorexia nervosa, já que nesse último caso as meninas estão sempre muito abaixo do peso “normal”. A pessoa com bulimia não apresenta recusa alimentar, mas alterna momentos de compulsão alimentar seguidos de episódios purgação, que se tratam de tentativas de liberar o corpo do excesso de comida ingerida. A purgação pode ser através do vômito, do uso de laxantes, diuréticos e enemas. A bulimia acontece em um ciclo: a pessoa tenta fazer dietas bastante restritivas para emagrecer, falha, tem episódios de compulsão alimentar seguidos de movimentos de purgação.

É importante ressaltar que apesar de a distorção da imagem corporal ser parte do critério diagnóstico dos transtornos alimentares, nem todas as pessoas que têm distorção da imagem corporal apresentam, necessariamente, algum transtorno alimentar. No entanto, toda pessoa acometida por um transtorno alimentar tem distorção da imagem corporal. Na contemporaneidade, há muitas pessoas, principalmente mulheres, que têm sua imagem distorcida em meio à massificação da divulgação de padrões e modelos corporais. Nesse sentido, faz-se necessário salientar que o diagnóstico de qualquer doença ou transtorno mental só pode ser fechado por um profissional habilitado, a saber: psiquiatra e psicólogo.

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Os transtornos alimentares como anorexia e bulimia estão sempre associado ao desejo de emagrecimento, ao desejo da pessoa de se tornar mais magra. O DSM aponta que esses tipos de transtorno apresentam grande risco do desenvolvimento de depressão e suicídio. Por isso, assim como propõe a campanha do Setembro Amarelo, precisamos falar sobre o assunto, pois a informação é sempre uma boa maneira de ajudar a quem precisa.

O corpo como uma obra de arte

Devemos irromper a fronteira que nos separa e nos impede de constituirmos as nossas existências como uma verdadeira obra de arte. semelhante aos gregos e troianos. Podemos alcançar esse estatuto de obra de arte descobrindo na relação entre corpo e vida uma potência do cuidado de si, e não simplesmente seguindo um modelo de beleza já preestabelecido.

Promover um cuidado de si mesma que se distancie e seja livre da opressão, da coerção do padrão estético normalizador.

O importante é que cada uma de nós possa discriminar o que é útil para si e construir, assim, um modo de vida verdadeiramente belo e não apenas decorativo. A estética da existência é uma possibilidade de nos construirmos individualmente e mais consciente de nós mesmas, através de um exercício de sabedoria e reflexão, em que podemos nos transformar do modo mais singular que pudermos ser.

A salvação de si: Quais são as nossas possbilibidades?

Estamos, a todo momento, tentando nos salvar. Seja do julgamento e do medo da condenação do olhar do outro, seja do peso da crucificação atribuída por nós mesmas sobre os nossos corpos, diante do espelho, da fotografia, da calça que aumentou um tamanho ou talvez dois, do decote que mostra um pouco mais do que deveria, das marcas de expressão do tempo que passou e que não queremos que o mundo veja. É assim: cada um deve buscar em si as imperfeições que podem e devem ser corrigidas.

A nossa verdadeira salvação virá da tomada de consciência e do despertar de um senso crítico para entendermos que o corpo é o veículo da nossa experiência na vida, é o meio pelo qual podemos ter acesso às melhores e mais ricas emoções. Ele está ao nosso favor em nessa experiência, por que então estaremos contra ele, travando uma batalha imaginária, quando o padrão estético é puramente criação social, de ordem biopolítica, que visa padronizar os gostos, as subjetividades e os próprios corpos?

O mercado se aproveita disso, e está cheio de opções e possibilidades para se alcançar a identidade tão desejada; ser feliz hoje associou-se a ter o corpo ideal. É preciso ter o corpo perfeito, cumprindo-se quantas metas forem necessárias para isso, pois somos uma máquina. Ou ao menos têm nos feito acreditar que somos, pois se é exigido de nós que sejamos eficientes e que esteja sempre “paga” a dívida moral com o próprio corpo.

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A salvação é uma atitude individual do sujeito sobre si mesmo. E aqui, sugiro que possamos nos salvar despertando a nossa verdadeira liberdade, tomando o nosso corpo como um plano de experimentação dos nossos desejos, vontades, construções. Nos liberando para estabelecermos uma relação plena de sentido com nós mesmas de maneira integral. Enquanto não nos emanciparmos das amarras sociais que encapsulam nossos corpos, aquele “Tá pago” nunca será suficiente.

A aceitação da imperfeição

Não, a mulher perfeita não existe.

Por trás de todos os procedimentos, tratamentos, dietas, suplementos, correções, filtros, produtos e cirurgias escondem-se as nossas falhas constitutivamente humanas.

Ter um corpo real é bem mais valioso do que buscar a “perfeição” de um corpo virtualizado e desnaturalizado. Que possamos buscar ser felizes dentro dos nossos corpos, aceitando e neutralizando as nossas falhas, cicatrizes e marcas. Nós não precisamos ser perfeitas, mas o nosso corpo merece felicidade. E nós também!

P.s: as ilustrações utilizadas nesta matéria são de Helena Morani – mais sobre o trabalho da artista clicando aqui.


REFERÊNCIAS

DSM-IV-TRTM – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. trad. Cláudia Dornelles; – 4.ed. rev. – Porto Alegre: Artmed,2002.

FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 2006.

GOLDENBERG, Mirian et al. (Org.). Nu & Vestido:  dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca.  Rio de Janeiro: Record, 2002.

SIBILIA, P. O pavor da carne: riscos da pureza e do sacrifício no corpo imagem contemporâneo. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, número 25. Porto Alegre, 2004. Págs. 68-84.


Nota editorial: o SobreOTatame.com é um site que produz conteúdos de cidadania, comportamento e cultura. Por meio dos conteúdos que publicamos, acreditamos na informação como força de educação e discernimento, desta maneira, abrimos espaço para profissionais que possam tratar de temas mais especificamente.

Thaís Fontinele é psicóloga, orientadora profissional e mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão. Atualmente, realiza pesquisas e discussões relacionadas ao corpo no contemporaneidade. Para mais informações e se quiser bater um papo com ela, só clicar aqui.

Iniciativa Elas SobreOTatame

Este texto faz parte do Elas SobreOTatame: uma iniciativa do SobreOTatame que aborda temas do universo feminino ao longo do ano, em textos, podcasts, encontros presenciais e convidados especiais. Tudo isso sob o comando da mulherada do site.

No segundo bloco, ocorrido entre abril e junho, a temática foi sobre Maternidade:

Cada bloco dura três meses, com uma temática escolhida. O primeiro foi sobre Prazer Feminino e Autoconhecimento. Durante os meses de janeiro a março, vários materiais sobre esta temática foram publicados:

O que te faz gozar, mulher?

“Você já é uma mocinha”

Podcast SoT EP01 – Do Luxo ao Lixo: experiências em apps de paquera

Tornando-me mulher com outras mulheres

Elas SobreOTatame entrevista Seane Melo

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Cidadania | Comportamento | Cultura. Criamos conteúdos e acreditamos que o palco de luta é a vida, o nosso tatame de aprendizados diários. #SobreOTatame

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