Texto de Madson Fernandes, em colaboração ao SobreOTatame.com (Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação).
Entre tantas histórias de gente que partiu por causa da Covid-19, o que podemos tirar de bom? O que a vida de quem se foi tem a nos ensinar?
Num mundo onde a indiferença à dor alheia é doença endêmica, viver na contramão disso deixa uma mensagem de esperança, mesmo quando a morte é prematura. Bráulio Ayres foi um destes seres humanos cujo legado de cuidado, especialmente com os mais pobres, nem a morte poderá apagar.
Era preto e pobre. Nasceu no quilombo de Santo Antônio, em Penalva, na Baixada Maranhense, e nunca deixou de comer arroz com feijão e farinha. Sua origem e sua cor não foram bem vistas na instituição que escolheu ingressar. Ainda assim, foi ordenado sacerdote católico em 1981, no apagar das luzes da Ditadura Militar. Era uma época em que a Igreja Católica da América Latina fervilhava de iniciativas de lutas populares.
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“Uma das coisas que mais me marcou foi meu aniversário de 15 anos, dia de uma greve geral”, recorda Elivânia Aires, 47, sobrinha do padre Bráulio. “Estávamos na Praça Deodoro, em frente à Biblioteca Benedito Leite, reivindicando a meia passagem para os jovens da Cidade Operária. E padre Bráulio estava lá, como padre e como militante, convocando todo o povo pra apoiar a causa”.
Padre Bráulio nunca se esqueceu de onde veio, e isso marcou profundamente o jeito que escolheu de exercer a religião. Filósofo e teólogo, pós-doutor em Antropologia, acreditava que o cristianismo no Maranhão só seria possível se compreendesse e respeitasse a origem branca, negra e índia.
“Lembro que eu estava reunido com a família do padre Bráulio no interior pra comemorar o aniversário de sacerdócio dele. Ele entrou na roda com as caixeiras, agradecendo ao Divino, exaltando a cultura popular, porque ele acreditava que Deus está na cultura popular”, lembra Thiago Diniz, 31, afilhado do Padre Bráulio. “Era pra lá que ele levava os médicos e os profissionais para ajudar os mais jovens do quilombo a não ir pro caminho errado”.
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Os pobres e pretos eram a prioridade para Bráulio. Foi um dos fundadores da Pastoral Afro-Brasileira e da Pastoral Negros do Brasil. Criou a Associação Santo Antônio dos Pretos (ASA dos Pretos), em Penalva, para cuidar da saúde dos quilombolas, com ações de educação e agricultura familiar. E desenvolveu projetos de formação de lideranças e de combate ao uso de álcool, tabaco e outras drogas pela Fundação Justiça e Paz se Abraçarão, na Cidade Olímpica, sua última paróquia.
“Ele sempre deixava claro que nós, os mais novos, temos que levar a identidade de onde a gente veio. Ele dizia que se a gente deixar nossas tradições morrerem, a gente morre junto. A história dos nossos antepassados tá junto com a nossa história”, conta Paulo Sérgio Filho, 22, sobrinho-neto do Padre Bráulio e membro da comunidade do Divino Espírito Santo, no Geniparana, que todos os anos repete a tradição de levantar o mastro e coroar o império, continuando o que aprenderam no povoado de Penalva.
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Além de trabalhar nas periferias e se envolver com o movimento negro, Padre Bráulio também foi pároco de São José de Ribamar e de N. Sra. de Nazaré, o que alargou ainda mais seu círculo de amizade.
Quando a Covid-19 o levou no último dia 18, a Igreja local lamentou. “Era o mais velho ordenado na Arquidiocese. Sempre acreditou numa Igreja formada pelo clero nativo e defendeu a opção preferencial pelos pobres, fortalecendo as pastorais sociais”, comenta o padre Admilson de Jesus, pároco de São João Batista, no Vinhais.
Neste domingo, 24, a Igreja Católica de São Luís irá celebrar a missa de 7° dia pela memória do padre Bráulio. Como inúmeras religiões, o cristianismo também desenvolveu seu próprio jeito de lidar com o fim último da existência humana.
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Assim como padre Bráulio, outras pessoas amadas também nos deixaram de repente, de uma forma cruel. Mas o legado dele é tão bonito, que ninguém, parente ou amigo, irá permitir que acabe. Talvez esta seja a principal lição a tirar destes tempos difíceis. Nunca permitir que o legado de alguém que nos amou se perca no tempo.
Nenhuma morte pode vencer o nosso desejo de construir um mundo melhor e amar os que dividem a vida conosco.
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Madson Fernandes é jornalista, trabalha comunicação para museus, e sonha em ensinar que conhecer a História serve para transformá-la. Para conhecer mais dele, siga-o no Twitter: @madsonnf.