Quando aceitar é a melhor decisão (Foto: Reprodução).
Frances Ha (2012) é um dos meus filmes favoritos. É também a tela de proteção do meu celular e um dos poucos arquivos de vídeo que eu ainda tenho no computador, para caso um dia eu fique sem internet e não tenha como assisti-lo on-line ou até mesmo saia do catálogo de algum serviço.
É um filme que conversa muito comigo, de várias formas: me deixa triste, alegre, me conforta, me incomoda e me entende. E a Frances tem 27 anos, como eu (apesar de eu já assistir esse filme direto desde os 25, risos). É um filme que sempre faz eu parar, repensar e caminhar. Não sei se é um drama ou se é uma comédia, acho que é só a vida mesmo.

Isso é algo característico do cinema do Noah Baumbach, que tem essa capacidade de fazer a gente conseguir ver o que é “cotidiano” e perceber que, nas mais diversas situações, principalmente as ligadas às nossas relações interpessoais, é meio complicado dizer o que/quem é certo ou errado. Existem diversas nuances e possibilidades de interpretação.
Pra algumas pessoas, Frances Ha talvez pareça um filme sem graça e pra outras ele vai ser uma grande sacada e converse muito com a realidade de cada um. Aqui eu vou me deter na minha interpretação desse filme e o que ele me diz a cada vez que eu o assisto, além de fazer um paralelo sobre como os ensinamentos desse filme servem também agora, no período de pandemia que estamos vivendo.

Frances é uma mulher jovem adulta, branca, solteira, relativamente de classe média baixa (quando a gente pensa que ela mora em um país desenvolvido), culta, extremamente inteligente, tem referências sobre tudo, gosta de ler, gosta de música, é uma mulher estranhamente sociável, porque ela é um pouco estranha e, às vezes, a sensação que eu tenho assistindo é que ela é o tempo inteiro deslocada do ambiente.
E isso, a priori, parece incomodar as pessoas que estão ao redor, que com o tempo são conquistas. A personagem Frances é exatamente como seu filme se apresenta: nos primeiros minutos você demora um pouco a ser fisgado, ele é em preto e branco, é lento, tu não sabe muito bem o que vai acontecer e depois tu vai te apaixonando pela história.

Relações, ausências de relações e solidão são temas frequentes nos filmes do Noah. Não é diferente neste. Mas, além disso, Frances Ha fala sobre aceitação, que é uma coisa que eu fui só entender e depois de assistir várias vezes. Sempre pensamos a “aceitação” numa perspectiva negativa, como se fosse uma coisa ruim, mas não, em muitos momentos o que a gente mais precisa exercer e treinar é aceitar as coisas.
Eu sempre quis escrever este texto, mas não conseguia. E agora parece que ele cabe direitinho em tudo. Inclusive, é como se fosse um exemplo do que esse filme me ensina: nunca consegui escrever e precisei chegar a esse ponto, neste momento do mundo e do país, para finalmente o texto sair e sair de um jeito completamente diferente do que eu queria.
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Não é incomum estar ouvindo as pessoas falando: “Poxa, 2020, você me prometeu!”; “Eu tinha muitos planos pra 2020” e etc. Nossos planos foram todos jogados pra escanteio, e o que o ser humano mais quer é controlar a sua vida, ter este suposto controle, mas ainda que a gente planeje e siga tudo à risca daquilo que desenhamos pra nós mesmo (e às vezes até pro outro), tudo pode ser mudado de uma hora pra outra, sem a nossa autorização, que é o que acontece o tempo inteiro com a Frances. Vamos lá?
Todos os planos mudam: os seus e os das pessoas, se encontre
O primeiro grande “acontecimento” do filme é o fim de um relacionamento. A Francesa desiste de um relacionamento que aparentemente já não estava bom: ele queria morar com ela, ela se recusa por sentir que tem um compromisso com a melhor amiga, com quem divide um apartamento. E, ora veja só, a amiga dela não teve esse mesmo cuidado e poucos dias depois apenas a informa de que vai se mudar para morar com outra amiga.
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É o primeiro baque da Frances, porque ela se pergunta “ué, eu não dei um passo no relacionamento que eu tinha por sua causa” (não foi por causa da amiga, óbvio que a amiga era uma boa justificativa, mas ela não queria estar naquele relacionamento).

E, bem, esta é primeira lição: as pessoas nem sempre têm o mesmo cuidado com a gente do que a gente tem com elas, e às vezes a gente não tem cuidado com elas também. Isso são coisas da vida, as necessidades das pessoas mudam, inclusive das pessoas que a gente mais ama e cabe a nós aceitar (ou não).
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A gente precisa entender que quem está do meu lado, que amo muito e que julgo conhecer muito bem, pode mudar de opinião, pode mudar a rota da sua própria vida e essa mudança de rota pode não me incluir, ou não me incluir da maneira que eu quero. Cabe a mim aceitar meu novo lugar na vida do outro, e se for duro ou injusto demais, me retirar. Mas se não, eu aceito.

Recentemente, dois dos meus melhores amigos entraram em relacionamentos sérios e eu me vi muitas vezes na Frances (ou no Joey, rs): desolada, chateada, vendo que tudo estava mudando nas minhas relações com essas pessoas. É isso: as pessoas mudam suas rotas e a gente tem que aprender que, de alguma maneira, nós continuamos na vida delas, mas de uma forma diferente, e aceitar e descobrir o lado bom disso.
Confesso que sou uma pessoa resistente a mudanças. Igual a Frances: apegada demais, sonhadora demais e, ao mesmo tempo, fincada demais no que tenho.
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Mas e agora que o mundo está de ponta cabeça? Não sei você, mas por aqui eu senti algumas vezes o meu chão estremecer, meu chão espiritual, emocional e relacional, grande parte de tudo isso porque eu mesma não sou muito aberta a mudanças. Tenho dificuldade de aceitá-las e isso faz com que eu me afaste e afaste as pessoas de mim. Não é fácil lidar comigo. Mas, enfim, vamos continur com a Frances…
Inamorável
Uma questão clássica da Frances é: relacionamento. O filme já começa com um cara finalizando o namoro com ela, ela aceita tranquilamente, depois conhece outro cara que é super culto, bem de vida, tranquilo e, adivinhem: não flui. Sabe-se lá por quê. Dali surge uma amizade bacana, ela vai morar junto com este cara e um amigo.

De alguma forma, eles a acolhem num momento difícil pra ela, não é uma situação que perdura muito tempo, até porque, mais uma vez, coisas da vida, está todo mundo tentando segurar a barra de ser adulto, de se sustentar, criar sua vida e etc.

É nessa fase da vida da Frances, que surge a alcunha undateable, a inamorável, porque ela não consegue se relacionar e um dos colegas dela estranha isso. Embora ela tenha facilidade de fazer amizades, não consegue sustentar nada amorosamente falando, mesmo tendo vontade de viver isso, que é o que dá para gente perceber ao longo do filme, principalmente em um dos monólogos que é quando ela fala do que uma pessoa tem com outra.

É uma cena estranhamente bonita: estão olhando pra ela e a reação é meio que um “Do que ela tá falando?”. Todo mundo só entendo no final. Isso é muito pessoal, se você assistir (me desculpa pelos spoilers) ou já assistiu e está numa situação de não conseguir se relacionar, ou não se relaciona há muito tempo e quer, talvez você entenda o que ela está falando, você entende o que ela quer dizer com “Isso é o que eu quero”.
Eu quero sentir que eu tenho lugar, que não é necessariamente uma pessoa, mas sim o que existe entre elas: o que existe entre as pessoas é um lugar que eu quero habitar.
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Esse é outro paradoxo da Frances, porque teoricamente ela tem tudo pra se relacionar: solteira, jovem, relativamente independente, bonita, legal, inteligente, engraçada, mas ela é undeateble, inamorável, e a gente não sabe por quê. Vida que segue.

Mudar a rota não significa desistir
Embora ela seja apaixonada por arte e muito dedicada ao seu trabalho— bailarina e professora de Ballet para crianças — , a área profissional da vida dela começa a desmoronar: ela é colocada de escanteio na cia da qual ela faz parte, não tem mais turma pra dar aula e recebe uma proposta de trabalho totalmente distante do que ela queria (na visão dela).
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A proposta é recusada, porque não faz parte dos planos, dos sonhos, aquilo não é pra ela. O problema é que não demora muito começa a Frances começa a sofrer as consequências de não ter aceitado, porque obviamente vai ficando sem grana.

É importante falar aqui que a Frances é uma mulher que a gente olha como independente. Sem emprego, as contas aumentando, tudo mudando… Ela perde o rumo, o porto-seguro que era a amiga, com quem ela dividia tudo, inclusive as finanças da casa e vai vendo tudo ruindo. É muito angustiante e triste, eu fico com muita pena.
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Frances entendeu como um chamado a desistir dos seus sonhos e não desistiu, mas teve alguns problemas por causa disso. Quando é que a gente consegue perceber que não desistir de um sonho não significa não ter que reavaliar a rota dele? Essa é a questão. Mas vamos lá, estou acabando.
Todo mundo quer colo em algum momento
Por último, quero ressaltar um outro momento no filme que é marcante para mim: o retorno às raízes. Quando Frances já se encontra numa situação crítica financeiramente e emocionalmente, ela decide passar um tempo com os pais.
À primeira vista, parece uma derrota, mas não é. Sabe quando você precisa ir um pouco para trás para pegar impulso? Sabe quando você tem que ir um pouco para trás para poder voltar a um lugar quentinho e aconchegante onde você sabe que receberá amor e cuidado?

Ainda que não seja a relação perfeita, não é a mesma coisa da sua infância, seus pais não têm mais obrigações com você, mas serve para tomar um fôlego. Às vezes, tudo o que a gente quer é colo. E é difícil ser adulto e ter que recusar esse colo ou talvez não tê-lo mais…
Nossos pais nos educam, nos colocam no mundo, e de um jeito ou de outro, chega um ponto em que nós (pelo menos alguns) queremos realmente não precisar mais voltar atrás. Mas voltar atrás nem sempre é ruim. Colo é sempre bom.
Quando você vai chegar ao seu limite?
Quando Frances chega ao seu limite e aceita que as coisas não andam como ela quer só porque ela quer, tudo começa a fluir. Tudo na vida de Frances flui exatamente do jeito que ela não planejou, mas, no final, tudo fica exatamente do jeito que ela queria. É estranho isso, não é?
Ela queria dançar, virou coreógrafa; aceita o relacionamento da melhor amiga e encontra nela o que existe como lugar afetivo que tanto buscava; consegue um lugar para morar, vira uma pessoa, continua só, undeateble, mas desenvolve outras relações tão importantes quanto uma conjugal.

Eu acho curioso como o Noah finaliza com a Frances sozinha, tudo foi se resolvendo, mas ela continua só e o fim é parênteses que não foi fechado, deixando nossa imaginação livre. Talvez seja um recado de que nossa felicidade não está nisso, independente se ela encontrou ou não esse amo. É por isso que eu gosto tanto deste filme, ele finaliza de maneira simples e real: estamos sós, somos sós, nossos planos nem sempre se concretizam, pode ser que eu encontre alguém, pode ser que não. E aí? O que fazemos com isso?

Mas o que isso tem a ver com a pandemia?
No momento em que escrevo este texto, estou completando 40 dias de distanciamento social. Moro sozinha, estou trabalhando de home office direto, então tem dias e horas que eu realmente me sinto muito só e às vezes nem vejo o céu. Tive desentendimentos nesse período, me senti a pessoa mais incômoda que existe, me distanciei não só presencialmente como virtualmente também.
Já chorei, já fiquei muito preocupada com minha mãe, já tive pensamentos ruins principalmente quando foco no passado e em quando isso tudo vai acabar. É importante dizer que, vez ou outra já me distancio, é uma prática comum na minha vida, mas uma coisa é você querer se distanciar, outra coisa é você ter que fazer isso obrigatoriamente sem data para finalizar…
Esses 40 dias me fizeram pensar muito, principalmente sobre como não temos controle de nada nem ninguém. Sobre como as coisas mudam repentinamente sem nossa autorização, sem nosso querer, de como é importante aprender a ficar só e, até certa medida, gostar disso.
Esses dias me fizeram pensar de como é realmente importante aceitar as circunstâncias e usá-las a seu favor. Aceitar que, bem, ninguém queria uma pandemia, mas ela veio. Aceitar que eu já estava solteira antes, agora mesmo que vou ficar, aceitar que algumas pessoas não estão se cuidando e por mim e por elas eu preciso redobrar os cuidados, aceitar que o Brasil está realmente uma grande bagunça política, aceitar que eu não gosto de televisão e de cozinhar, aceitar que não sei o que diabos estou fazendo com o mestrado, aceitar que ninguém vai ter pena ou preocupação comigo de maneira especial porque eu sou só mais uma pessoa nessa confusão e que está todo mundo adoecido (já estávamos, só piorou). Aceitar como Frances aceita.
E agora? O que eu faço com tudo isso que eu estou buscando aceitar?
Junto com Frances Ha, outras coisinhas me fizeram pensar demais neste momento. Gosto muito de um podcast chamado “Autoconsciente”. Ele é apresentado por Regina Giannetti e há algum tempo trabalha noções de mindfulness de uma forma bem didática e tranquila para qualquer pessoa.
Desde março, Regina vem trazendo alguns episódios relacionados a este momento de pandemia, e em alguns ela fala justamente sobre isso: precisamos aceitar as coisas que dão errado e tentar mudar a rota, sem nos causar tanto sofrimento. É claro que algumas pessoas estão em situações tão críticas, relacionadas à sobrevivência mesmo, que vai ser difícil fazer isso, ou até mesmo impossível, e é também por isso que, a gente que pode, tem que tentar manter a calma e fazer o possível para nos ajudar e, assim, ajudar ao próximo nesse momento de dificuldade.
Super recomendo:
Episódio 58: Nesse momento de crise;
Episódio 60: Mantendo a sanidade.
Existe uma carta no baralho de tarot do Osho, chamada Desaceleração. No dia que estava finalizando este texto, fiz uma tiragem terapêutica para mim mesma, pedi por uma reflexão, algo para que eu pudesse meditar em cima. Foi esta carta que me surgiu, ela diz o seguinte:
“[…] Há um momento em que você se prepara para deixar de lado quaisquer expectativas que tem cultivado a seu próprio respeito, ou a respeito de outras pessoas; prepara-se para assumir a responsabilidade por quaisquer ilusões que possa ter estado carregando. Nessa hora, não há necessidade de fazer nada, bastando repousar na plenitude de quem você é neste exato momento. Se os desejos, esperanças e sonhos estão se tornando vagos, tanto melhor. Seu desaparecimento está abrindo espaço para um novo clima de tranquilidade e de aceitação das coisas como são. Você irá sentir-se capaz de dar as boas-vindas a esse crescimento pessoal, de uma maneira que nunca esteve antes ao seu alcance. Desfrute essa sensação de diminuição do ritmo, de se aproximar do repouso, e de reconhecer que você já está em casa.”
Bem, o que Frances Ha, o tarot, o podcast que sugeri, e o que eu, afinal de contas, queremos dizer é: está difícil pra todo mundo. E aí? O que fazemos com isto? Aceitar as circunstâncias talvez seja o primeiro e mais dolorido passo. O que vier depois disso, pode ser lucrativo, vai depender da gente, do quanto a gente está disposto a refazer planos, traçar novas rotas, pensar em outros objetivos e pedir ajuda.
Aproveite pra se esvaziar, pra repensar, para descansar, pra mudar alguma coisa internamente antes da gente se voltar novamente e quase que completamente ao externo. Não se cobre, não fique desejando que tudo volte ao normal — porque nada estava normal! — e se pergunte: de que outras formas os meus mesmos sonhos podem se realizar agora?

Frances Ha finaliza com uma coreografia feita por ela mesma, claramente é a vida dela desenhada em passos, é uma coreografia parecida com erros, é a vida dela e você consegue sentir o quanto ela está feliz com o resultado, apesar de tudo ter sido diferente.
No final das contas, cada erro nosso, cada plano não concretizado ou reformulado, cada novo passo que temos que aprender, ensaiar e apresentar, tudo isso faz parte da nossa vida, essa aqui que estamos vivendo, e saber enxergar as possibilidades que ela oferece, com todas as dificuldades, bastante honestidade sobre nosso próprio desenvolvimento e o que queremos, além de uma pitada generosa de disposição, nos levam a uma minha caminhada muitas vezes surpreendente e, acreditem, também banal.
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A vida é isso: aceitação não é conformismo. É ver beleza num lugarzinho que é seu, com bagunça, com coisa faltando, com solidão, com amigos, com livros e trabalho. É um processo de cura, faz parte do luto, faz parte do crescimento.
O que você precisa aceitar agora para poder viver este período e o que virá depois?
