“Você já é uma mocinha”

Foto: Reprodução/Internet.

Sobre menstruação, autoconhecimento, amor próprio e ressignificar tudo isso que dá trabalho pra caramba

Eu vou tentar seguir a seguinte linha de raciocínio aqui. Por favor, tentem me acompanhar. Parece muita coisa (e é), mas elas estão todas interligadinhas:

Entender a menstruação, algo que é característico do “tornar-se mulher” na nossa sociedade, perpassa por entender como o corpo funciona não apenas em seu aspecto biológico, mas também nas esferas psicológicas (e eu acredito que corpo e psique estão muito ligados — muito mesmo, mais do que a gente imagina).

A busca por esse entendimento requer um pouco de isolamento e muita auto-observação para compreender as mudanças que mexem tanto com a gente, os hormônios à flor da pele, o corpo te dando dicas, as alterações no humor… A forma como você lida com esses assuntos, que parecem tão triviais, podem te ajudar a se entender melhor como pessoa e, mais especificamente, como mulher, como, de um dia para o outro, alguém te diz que você já é uma mocinha, que já é uma mulher.

Estou vivendo esse processo de entender tudo isso e falo aqui como leiga, de verdade, como alguém que também tem descoberto esse universo e que anseia por poder compartilhar e aprender mais sobre ele e sobre mim mesma.

Para começar, vou contar uma breve historinha, a historinha de como EU virei uma mocinha:

Era feriado, eu acordei, estava sozinha em casa, tinha 13 anos (fui a última entre as minhas primas a menstruar). No dia anterior, eu senti muita dor, achava que era dor na coluna, quando acordei, fui ao banheiro e vi o sangue. Na mesma hora, tudo fez sentido: “Ah, então o que eu senti ontem era cólica…” Já me desesperei porque sabia que ia sentir essa dor pra sempre — e, nesse mesmo dia, ela foi só piorando… Calmamente procurei um absorvente nas coisas da minha mãe, mas não encontrei. Então, fiquei sangrando até a hora dela chegar — sim, tive que lidar MESMO com meu sangue no meu primeiro dia! Minha mãe chegou e contei pra ela, que foi logo providenciar o bendito absorvente. Quando voltou, voltou com um gigante, com cobertura seca, abas e o caramba. Foi no meu primeiro contato com o absorvente que parece que caiu a ficha: eu me senti péssima usando, me machucou, eu não colocava direito, minha mãe tentava me explicar, mas não conseguia, eu me sujava toda, aquilo me irritou de tal forma que eu comecei a chorar. De raiva.

(Artista: Elisa Riemer)

Tenho uma prima de nove anos muito próxima. Os seios já estão despontando, ela já está se interessando em arrumar seu próprio cabelo, inventar penteados, gosta de perguntar sobre várias coisas, incluindo a menstruação (que ela super deseja). Não faz muito tempo que ela me demonstrou essa vontade de menstruar e eu soltei um:

“TÁ DOIDA?! É HORRÍVEL! TU NÃO SABE O QUE TÁ FALANDO!”

Eu mesma falei isso. E como me envergonho de ter falado isso.

Hoje, já consigo escrever sofrimento entre as aspas, mas, acredite, por muito tempo era assim que eu vi realmente: um martírio, um castigo.

O meu ódio por isso fez eu mesma ir atrás de várias maneiras de ficar pelo menos confortável (OB e coletor menstrual, obrigada!), cheguei a cogitar, sinceramente, em parar com isso de vez me entupindo de remédio, só que minha aversão e indisciplina com medicamentos de qualquer ordem me afastaram desse desejo (mal para as cólicas eu tomo) — nada contra quem faz isso por conforto ou por necessidade, somos todas livres para escolher e aderir ao que nos faz sentir melhor. O que quero enfatizar aqui é como a relação com o nosso corpo, este corpo da menina que vira mocinha e agora está se tornando uma mulher, tem uma relação direta com o autoconhecimento de maneira geral e de como culturalmente somos vistas, e que, desde cedo, nessa relação somos ensinadas do quanto ser mulher é difícil, é sofrível, é doloroso.

E dói mesmo, literalmente. Mas compreendermos isso sempre dentro da dinâmica do sofrimento faz alimentarmos um padrão de pensamento que é de que “ser mulher é ruim”. A menstruação e a maneira como a gente lida com ela é só um forma desse pensamento se expressar.

Depois da minha primeira relação sexual, comecei a ler tudo sobre fertilidade. Meu maior medo era engravidar na minha adolescência. A busca pelo conforto e por métodos contraceptivos me obrigou a me observar: aprendi sobre meu ciclo, sobre o período fértil, sobre sintomas, sobre a TPM, mas tudo ainda numa aura muito biológica, “médica”, como se tudo que acontecesse no meu próprio corpo não dependesse de mim mesma, não fizesse parte de mim. Você já teve a sensação de que algo ocorre com você que não pode ser controlado, que só te traz preocupação e para o qual você está submetida? É assim que lidamos com o nosso corpo e, mais especificamente, com a menstruação, que, mais uma vez, está diretamente relacionada com a noção de tornar-se mulher.

Somos ensinadas a odiar nossos corpos, somos ensinadas a entender como é um grande martírio isso que nos acontece. Aprendemos que é um castigo, não conseguimos ressignificar a dor física, a menarca traz responsabilidades e exigências sociais que nos sufocam, nos entupimos de remédio para não ter que lidar com nada disso. Recusamos o nosso corpo nesses dias, sentimos nojo do nosso próprio sangue e muitas vezes chamamos de loucas e loucos aqueles que não têm incômodo nenhum com esse líquido. Entendemos a tensão pré-menstrual como o próprio Satanás tomando conta da gente e validamos, nós mesmas, essa visão muitas vezes. Não percebemos o quanto tudo isso que acontece é parte de nós. E tem seu lado positivo, belo e natural. Mas por que é natural e não conseguimos lidar com naturalidade ou, até mesmo, respeito?

(Artista: Elisa Riemer)

Quando me dei conta disso e comecei a pesquisar sobre o assunto, me propus a me observar numa perspectiva muito mais ampla, não só em termos de “sinais e sintomas” de que a menstruação está vindo, como eu sempre fiz, mas também em como me relaciono comigo mesma e com os outros durante todo o ciclo. Entender como meu corpo e minha psique trabalham juntos e como meu ser consciente às vezes vai na contramão de tudo, fez eu perceber o quanto às vezes eu mesma me causo dor, sofrimento, faz eu ser reclamona e ingrata em vez de compreender tudo como parte da mulher que sou, em vez de me proteger de situações em momentos mais delicados, em vez de usar a meu favor as potencialidades que cada momento traz. Isso me ensinou a ser paciente comigo mesma.

Há algum tempo tenho mergulhado no tema de autoconhecimento. Senti necessidade por sempre me achar “instável” e “sensível demais” (coisas que já ouvi pra caramba sempre num tom de crítica — e que acreditei ser ruim). Vídeos, leituras, músicas, conversas com amigas, psicoterapia, astrologia, escrever, pensar vários dias sobre cada acontecimento e sobre cada reação minha… Tudo isso fez e faz parte desse processo de autoconhecimento meu (inacabado e nem sempre organizado) e tudo é válido. Mas, olha só, até outro dia, a única coisa que eu nunca tinha parado pra observar com mais carinho e atenção é simplesmente a relação do meu corpo e eu. E, depois disso, pode apostar, muita coisa está mudando.

Aprendi várias coisas nesse processo, uma delas, simples e até clichê, mas que nunca antes tinha tocado tanto em mim, é: a vida é um ciclo, a dor faz parte disso e tudo pode ser ressignificado. A natureza tem seus ciclos, suas estações e nossos corpos também funcionam assim, tanto no micro como no macro. Homens e mulheres nascem, crescem, passam pelas transformações do corpo, amadurecem (ou não, né…) e morrem. A mulher, entretanto, vive isso todos os meses, e quando começamos a entender a grandiosidade disso, até a “morte” se torna bela, até o inverno tem sua magia, ainda que a gente prefira o verão e a praia (fiquem livres para fazerem outras analogias!).

Compreender a grandiosidade disso que acontece com o nosso corpo e com a gente, numa visão mais ampla, nos faz entender que toda mulher é sagrada, toda mulher é cheia de potencial que, infelizmente, é sufocado pelo machismo, pela falta de incentivo durante a vida, pela ausência de referências positivas paras as meninas e, inclusive, porque não nos conhecemos bem, não nos observamos bem e, por isso, não cuidamos direito de nós.

(Artista: Elisa Riemer)

Mergulhe em você mesma e faça isso de uma perspectiva positiva, preste atenção no seu corpo, não para encontrar aquilo que você acha que é um defeito, mas para valorizar as suas potencialidades e, mais ainda, para transformar sua relação com ele.

Preste atenção nos seus sentimentos, nas suas vontades, no que te excita, te atrapalha, no que te deixa ansiosa, carente, focada, alegre, triste… Não para deixar tua autoestima lá embaixo ou se achar a pior pessoa do mundo, mas para identificar quando você fica mais vulnerável, mais forte e mais decidida, para se cuidar, se amar mais ainda. Anota. Conversa. Mergulha. Você vai se apaixonar por si mesma!

“Você não acorda um belo dia e se transforma em borboleta”
– crescer é um processo

A Rupi Kaur que escreveu. E como isso é verdade.


Essa matéria é parte do projeto #ElasSobreOTatame, conheça mais aqui. Durante os meses de janeiro a março, trataremos a temática Autoconhecimento e Prazer Feminino. Acompanhem as nossas redes sociais.

Vamos conversar aqui nos comentários!

Steffi de Castro é psicóloga. Atua em São Luís como designer instrucional e escritora. É redatora no SobreOTatame, escreve e estuda sobre música, feminismo e comportamento. É estudante de tarô, dançarina amadora, podcaster, adora ASMR e a vida offline.

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Regimarina Reis
Regimarina Reis
6 anos atrás

Texto massa, que abraça a gente!

Gabriela Mercedes
Gabriela Mercedes
6 anos atrás

Parabéns pelo texto incrível !! Isso precisa ser acessado por muitas mulheres.

Steffi de Castro
6 anos atrás
Responder para  Gabriela Mercedes

Obrigada, Gabriela! Que bom que você curtiu <3 Vamos espalhar a mensagem 🙂